segunda-feira, 27 de junho de 2011

O trompetista

Por Marcos Daseiras
A noite apanhou o músico no caminho da verbena. Era o tocador da trombeta e uma orquestra sem trombeta é que não pode tocar. Os dançarinos que ainda conservavam as ânsias apesar da chuva, perderam-nas de vez, por obriga, quando o director, cantante e condutor do camião anunciou a ausência do elemento mais importante do conjunto:
- E os senhores hão de compreender que, sem trombeta, não podemos oferecer o nosso repertório mais aguardado. É por isso que demando do distinguido público o perdão.
Apesar de não haver baile, ao outro dia, o vereador de cultura e membro da comissão de festas não deu falado com qualquer músico que fosse. O dinheiro que pagaram já não haviam de recuperá-lo, pensou, enquanto encaminhava os passos para a reunião extraordinária da assembleia municipal, onde o único ponto da ordem do dia era a trapalhada em que se convertera o último dia das festas do patrão. Para além da verbena falida, a chuva que caíra desluzira o espectáculo de fogos artificiais que, como todos os anos, estava prevista para encerrar as celebrações. De feito, devera cair toda pela noite, porque o dia estar, estava frio, ora, amanhecera sem uma só nuvem. Vinha a dar-lhe voltas na cabeça ao informe que teria de apresentar perante os nove companheiros e dez companheiras que foram elegidos após as últimas eleições autárquicas, parecia-lhe estar a ouvir os berros do chefe da oposição a pedir-lhe a demissão, não, a exigir-lhe a renúncia ao cargo e a devolução das receitas que cobrara desde que se aprovara a concessão da dedicação exclusiva, esquecendo o tal chefe da oposição que tal aprovação acontecera quando ainda era a mão direita do presidente da câmara.
Sem dar por isso, houve um momento em que o vereador ergueu a olhada do tramo de chão que lhe ficava mesmo diante dos pés e viu, a atravessar o campo da feira, um forasteiro que reconheceu. Sim, era ele. Não podia ser outro. Não havia dúvidas. As nuvens da sua mente começaram a despejar-se, deixando um céu ainda mais azul que o exterior. Nem os berros imaginários do chefe da oposição foram quem a cobrir a ideia que se lhe formara no cérebro, já logo sem saber como, mal vira o trompetista da orquestra. Tinha de o ser, não apenas porque era a única solução, se finalmente tudo corria bem, aos problemas financeiros que xurdiam à sua frente como ainda porque a tal hora as classes de trombeta que dava um músico da terra num local das traseiras da igreja estavam suspendidas à espera da confirmação da homologação dos títulos pelo tribunal supremo de Galiza, aonde chegara o recurso apresentado pela Associação Provincial de Trompetistas Profissionais da Crunha, da que o professor fora expulso por ter aceitado tocar no casamento duma velha amiga, que fora noiva, em tempos, da presidenta perpétua da associação. Todo o mundo sabia disso, mesmo os moradores das freguesias mais afastadas da vila, pese embora a concentração potencialmente tóxica das emissões da chaminé da central combinada de energia nuclear e tratamento de resíduos urbanos que uma empresa americana montara no vale após cobrar uma subvenção do concelho para projectos respeitosos com o meio ambiente. Não podia ser que um vizinho qualquer estivesse àquelas horas a atravessar o campo da feira com uma trombeta, desafinada pela chuva da noite, na mão.
O vereador tinha de agir depressa. Não sabia o que o músico viera fazer ali, e quanto tempo iriam demorar as gestões que devia realizar. Talvez andasse o homem perdido, desorientado, a procurar pelos outros componentes da orquestra, que onde ia que escaparam agachados no interior do camião. Apenas o director e chofer tivera de enfrentar a ira dos frustrados dançadores, que expressaram a sua opinião, contrária à decisão tomada pelos músicos, pegando nos croios do solo do campo da feira, restos das recentes obras de remodelação, provavelmente desnecessárias ainda que mais bonita ficou, e atirando-os contra os vidros da cabina do condutor. O director da orquestra e motorista foi atingido na testa, e começou a sangrar generosamente, mas nem por isso calcou no pedal do freio, calcou no de aceleração, levando por diante um grupo de manifestantes que tratava de impedir a fugida dos traidores. Isto provocou ainda mais as iras dos atacantes, que perseguiram a viatura até mais alô dos antigos lameiros agora ocupados pelo polígono industrial, entre as naves propriamente industriais, as silvas e tojos que voltavam a invadir as parcelas não edificadas e o lixo que deixaram atrás uns ciganos (é verdade que os ciganos, antes de marchar, deixaram tudo bem arrumadinho e disposto para ser retirado e depositado no local ajeitado, mas ninguém viera recolhê-lo e disto havia séculos).
Os intentos desesperados dos membros da comissão de festas para acalmar os ânimos foram inúteis. O argumento da provável denúncia por agressão que os agredidos iam interpor nos julgados não podiam convencer umas massas formadas, os mais deles, por lambões vindos de fora do concelho. Era para se ver o cortejo dos sobreviventes, ao regressarem à vila depois da batalha, derrotados, para pegarem nas suas viaturas e regressarem à cidade. Regos de suor misturados às pingas da chuva e à lama nos rostos de cansaço e desilusão, voltavam enchoupados, enzoufados, enfoulados não, porque a festa do pão fora o domingo. Arrastavam as pernas, que não se davam afeito à súbita mudança de objectivos e mais de carácter, de bailarem a perseguirem, de perseguirem a retirarem-se. Porque a regedora da polícia municipal não era amiga de bória, que, a sê-lo, dava mesmo vontade de mandar os quatro agentes da força prenderem imediatamente os que voltavam da infrutífera perseguição do camião, não pelo quebranto às normas de boa conduta e convivência cidadãs, antes pelo contrário, por não terem sido quem a impedir a fugida da orquestra. Sim, o camião liscara. O director da orquestra e camionista tivera, ainda por riba, um gesto para com os derrotados e mais para com os membros da comissão de festas antes de abandonar o território da freguesia e do concelho: um toque prolongado da buzina seguido dum outro mais curto, a fazer troça dos que ficavam para trás. Mais longe, na vila, o eco da buzina chegou aos ouvidos dos membros da comissão de festas, que interpretaram a mensagem da buzina no sentido de confirmar as suspeitas que criaram quando a  algazarra começara. O director da orquestra tinha mentes de iniciar um processo quer judicial quer cível contra eles. Tal lhes quadrou a ação despesperada promovida pelo presidente da comissão, que também era, já o sabemos, o vereador de cultura da câmara municipal.
Voltando ao presente da narração, eis vemos o tal vereador a aproximar-se do trompetista. Para causar mais efeito, fê-lo a modinho e pelas costas, como a subministrar um remédio qualquer contra o soluço. Ter, não sei se dantes soluço teria, mas no tempo que o trompetista passou ao serviço da câmara municipal, não cessou, nem em público nem em privado, de sofrer uma ou outra contracção involuntária do diafragma. Tal passou a fazer parte do espectáculo, e sem dúvida contribuiu para o seu imediato sucesso, que mudou num sentido inesperado os planos iniciais do presidente da comissão. O início da relação foi, pois, um leve empurrão, acompanhado dum berro seco, que o político incutiu ao músico. Ainda sem repor o ritmo cardíaco nos valores regulares prévios ao susto, o desorientado trompetista teve de ouvir como aquele desconhecido lhe propunha um acordo sem pés nem cabeça, ao passo que lhe pedia para o acompanhar à casa do concelho como convidado estrela.
Ainda que não a previra, a sua entrada em cena afigurou-se-lhe espectacular ao vereador de cultura. Nos seus ouvidos, ressoava a música de cem trombetas. Os companheiros adornavam o caminho entre a porta do salão e a sua cadeira arrojando-lhe aos pés flores de todas as classes e de todas as cores, entre ruidosas salvas de palmas sem fim. Porém, longe disso, a única trombeta que soava era a do músico, desafinada, que, timidamente, entrara no salão de plenos atrás do satisfeito regedor. As salvas de palmas eram os protestos irados dos outros concelheiros e mais do presidente da câmara, que pronunciavam berros interrompidos, nalguns casos, por contracções diafragmáticas semelhantes às do músico, só que as consequências foram as opostas. Os concelheiros que não puderam repor-se em tempo, foram afastados das listas para as seguintes eleições autárquicas. Quanto ao manto de flores, poderia ser identificado como formado pelas carteiras, estradas pelo chão como se fosse uma aula de exame, nas que o de cultura, que continuava nas berças, tropeçou, indo cair debruçado contra o rebordo da mesa. Não vos conto a dor com que o homem teve de apresentar o seu plano inicial.
A relativa recomposição do cenário demorou-se uns minutos. O chefe da oposição foi o último a calar, já havia de ter tempo mais para a frente, prometeu-lhe o presidente da câmara, a pedir demissões a eito. Por enquanto, as olhadas de todos concentraram-se nos recém chegados. O presidente da câmara deu-lhe a palavra ao presidente da comissão, que explicasse a razão da demora, duma entrada tão irregular e mais da presença dum forasteiro na sessão.
- Estimados compatrícios: - discursou o presidente da Comissão, como se fosse um general romano de regresso das suas campanhas de depredação das províncias- o motivo da presença de tão descabida personagem em tribuna tão ilustre é recuperar o honor das festas da freguesia. Este trompetista tão aparentemente pouca cousa é-vos o melhor músico de todos os tempos e tenho em mente organizar para a outra semana uma nova jornada de festa onde ele, o músico, actuará como uma orquestra, cobrando apenas como um cientista em práticas na universidade.
- Todos os instrumentos?, foram perguntado os vereadores, um a um ou por parelhas.
- Todos- respondeu o de cultura, sem olhar para o rosto de espanto do desorientado trompetista, que teimava em fazer soar levemente a sua ferramenta de trabalho. O sucesso da convocatória estava assegurado porque não iam cobrar nada pela assistência. Mas também havia que tirar proveito:
- Podíamos era procurar um título atraente e montar uns furanchos. Que vos parece: a Festa do Chocolate de Coiro?- propôs um membro anónimo da corporação municipal.
- Aprovado, aprovado- aprovaram, ao uníssono, os concelheiros de todas as cores, mesmo os independentes.
- Eu só queria acrescentar uma cousa- interveio o chefe da oposição-, que é para ela figurar no diário de sessões: exijo a demissão...
- Do vereador de cultura- completou o secretário, que também foi o que convidou- Imos tomar-lhe umas taças à de Interrogante para celebrarmos o acordo.
Havedes de vos perguntar a razão por que o trompetista aceitou o futuro que lhe tracejaram? Foi sobretudo por causa da desorientação que lhe causara o abandono a que o botara a sua orquestra. Se quadra, também ajudou a oferta dum dos pisos que o presidente da comissão recebera como parte do pago por umas leiras que vendera à empresa da central combinada.
O dia chegou e a I Festa do Chocolate de Coiro foi um sucesso. Mesmo apareceu por ali uma equipa da televisão galega, que fez uma reportagem sobre ela apenas porque precisava de encher uns minutos da grelha de programação que a suspensão dum partido de futebol deixara livres. Foi esta reportagem que provocou o lançamento a nível nacional do famoso e tradicional chocolate preparado à moda de Coiro (isto é, com um debuxo do Cruzeiro de Ferro no envoltório) e o descobrimento dum novo valor da música galega, o homem – orquestra, que actuou mais de cem vezes no Luar.
Mas não há mal que dure cem anos e um dia, pela manhã ou pela noite, tanto tem, sem saber como, Coiro começou a fartar-se do homem – orquestra. Dali a pouco um pleno municipal decidiu suspender o contrato que ligava o trompetista, o qual iniciou a sua carreira em solitário, sem grande sucesso financeiro, porque o coitado herdou, graças ao labor, bem recompensado com as requalificações duns terrenos próximos da central combinada, duma das melhores equipas de advogadas da Cabra de Baixo, a dívida que o concelho tinha com a sua antiga orquestra. A central combinada livrara até aí os vizinhos da freguesia da febre construtora, mas era visto que também não há bom que dure sempre:
- Nós também queremos cobrar, e os que não quiseram, foram expropriados.
Quanto ao trompetista, longe já a fama doutrora, casou-se com a filha do professor de trombeta, uma pianista clássica pouco reconhecida, mas de grande talento. Após a reforma do sogro e pai, a parelha fez-se cargo da escola de música, propriedade da mesma companhia que manejava a central combinada. 

sábado, 25 de junho de 2011

Uma história impossível de acreditar

Por: A sombra do carvalho em terras do Alto Minho

Depois, quando a sociedade secreta
La Gaviota Negra” será descoberta.

Estava a lê-lo, mas não podia dar credo. Uma cousa assim só podia ser fantasia, pensou. Mas alguém teria suportado tantas dificuldades apenas por uma fição. Não. Aquilo era algo sério. Contudo, uma organização secreta, alta tecnologia e manipulação genética em humanos. Algo tinha de haver errado ou quando menos de exagerado. Reflexionou mais um bocadinho. Suspirou e guardou novamente os documentos na gaveta. Pegou o telemóvel e telefonou ao seu superior.

Antes, quando algumas vítimas que fugiram
organizavam um movimento de resistência

Numa rua de Vigo iniciara-se um tiroteio. As balas rompiam os vidros dos autos. As pessoas fugiam presas do pânico. Em breve foram ouvidas as campainhas e as luzes de cores dos carros da polícia, mas isso não dissuadia a nenhum dos bandos contendentes. Continuavam a disparar, a cruzar o fogo de pistolas e metralhadoras, mesmo alguma granada fazia voar nacos de asfalto que impatavam violentamente em todas as coordenadas. A polícia achava-se impotente perante um duelo dessas magnitudes. Aguardavam reforços.

Em meio de explosões, balas e destruição um dos atiradores movia-se dum modo inacreditável, cuma velocidade e destreza que nem o melhor dos guerreiros de todos os tempos poderia imitar. Parecia desafiar os limites da psicomotricidade humana. Disparava a alvo certo, pulava por acima dos autos destroçados pela metralha, derrubava aos adversários com pancadas e chutes acrobáticos.

- Miro, e momento de fugir – berrou-lhe alguém desde um Land Rover.

O herói subiu e também outros três atiradores. Um deles estava ferido. O pano branco que lhe envolvia o braço tingia-se de vermelho.

- Este será o nosso símbolo – disse Miro.
- Qual?
- O sangue das feridas daqueles que são silenciados a disparos, sobre o branco da paz, o branco de quem é sincero e justo.

Chegaram até uma cabana no meio dum bosque de eucaliptos. O ferido apoiou-se em Miro. Entraram dentro. Um deles ficou fora ocultando o Land Rover num pequeno alpendre perto da cabana. Sentaram ao ferido numa cadeira para limpar-lhe a ferida e intentar tirar-lhe o projétil. Miro olhava pela janela a meditar em voz alta.

- Temos de acabar com eles, descobri-los, mas para isso é necessário obter mais informação, mais informação da que lhe facilitamos a da Silva. Não sabemos nada. Merda! Henrique, como estás?
- Tou fodido, fodido, mas.. - disse entre berros – hei sair desta. Não foi para tanto.
- Lamento todo isto. Se pude-se saber algo, uma pista. Onde caralho têm o búnquer?
- Miro, a próxima vez lograremos capturar a um com vida e faremos que fale. Tens a minha palavra. -disse Inácio.
- Eu sei, meu amigo, eu sei. A próxima vez não falharemos.

O comissário reuniu aos seus agentes para falar do tiroteio. Não faziam ideia do que acontecia, quem disparava a quem. Suspeitavam que aquilo era cousa de máfias numa disputa por narcóticos. Se calhar guardava relação com os moços desaparecidos. Havia anos que muitas crianças e rapazes estavam a desaparecer sem deixar rastro.

Levaram ao laboratório mostras de sangue e pegadas digitais nalgumas armas. Intentavam identificar aos mortos. Os resultados de todas as pesquisas chegariam em poucos dias, mas não se conseguia identificar a ninguém. Não havia nenhum dado relacionado com os falecidos. É como se não existissem, não tivessem bilhete de identidade. Aquilo era algo do mais estranho. Desesperado, o comissário envia à zona a vários agentes de paisano para intentar tirar alguma informação que poda ser de ajuda, para ver se alguns dos implicados voltam ao cenário do tiroteio.

Enquanto a polícia dava paus de cego, o comando reunia-se em assembleia. Estavam decididos a pôr fim à Gaivota Preta. O melhor modo de fazê-lo era descobrir o segredo, mas antes tinham que averiguar onde se refugiam, onde têm oculto o búnquer. Necessitavam fazer-se com algum membro implicado ou relacionado com a organização. Esse era o objeto da assembleia. Deviam averiguar o modo de achar a alguém da Gaivota Preta. Sabiam que fazer correr o rumor de que contavam com informação clave não voltaria a funcionar para atrai-los, mas e se os convocassem a um encontro. Alguém sugeriu a ideia de pôr um anúncio no jornal.

- Ninguém sabe que existe algo com o nome ou o alcunho de “La Gaviota Negra”, não é? Bom, pois é simples. Só eles se darão por aludidos. Diremos algo assim como....

- Aguarda – Interrompe Inácio – E a polícia? Estarão atentos a qualquer cousa estranha. Se calhar não, mas é possível levantar suspeitas, que a Gaivota Preta veja isso como algo demasiado arriscado e considere oportuno não acudir.

- Mas podemos fazê-lo duma forma bem discreta e segura de modo em que eles também se sentirão livres das suspeitas policiacas. A ideia é pôr um anúncio que diga o seguinte: “Vende-se ave parecida a gaivota de cor preta, interessados ligar para” e aí colocar um número de móvel seguro que lhes permita ligar para nós. Eles ainda não sabem se temos ou não informação que os poda prejudicar e em qualquer caso querem liquidar-te a ti, Miro, e a todos nós. Acho que pode funcionar. Se alguém tem uma ideia melhor é o momento de comentá-la.

- Esta vez irei eu só – Disse Miro. - Não posso pôr-vos em perigo. Ademais, sei cuidar-me.
- Não, disso nem falar. Não te vamos deixar só perante o perigo.
- Falei. Irei sem reforços. É melhor desse jeito. Não insistais. Sei bem o que faço.
- Uma cousa. E aquelas pessoas que chamem interessadas no anúncio e que não têm nada a ver com todo isto? Poderia estragar a operação. Como é que sabemos que são os da Gaivota Preta? E como eles saberão que somos nós?
- Bom, tens razão. Pronto, eu sei. Tudo meditado. Não há lugar a problemas. Já está. Todo o que há que fazer é adicionar ao anúncio seis mil ou dez mil euros. Que se vende o pássaro por dez mil euros. É demasiado custoso como para que alguém se interesse por ele e não demasiado como chamar a atenção da polícia – Disse o Inácio.
- Daquela está falado, disse Miro.

La Gaviota Negra” conseguira capturar a da Silva

O jornalista percebeu que alguém o espreitava. Estugou o passo. Estava sozinho nas ruas escuras do bairro. A angústia instalara-se no seu peito. Apenas vinte minutos e estaria na moradia. Deteve-se. Olhou para todas as coordenadas sem avistar a ninguém. Tentou afinar a vista na escuridão não fosse haver qualquer ameaça agachada entre as sombras. Apenas um gato fomento acima de contentores de lixo. Ernesto da Silva continuou a sua marcha. É apenas a minha imaginação… Pensou. Mas a inquietação não o abandonava. Talvez fosse a pasta que portava um talismã que atrai o azar.
Lamentava não ter vindo de táxi à saída. As palavras do Inácio ressoavam na sua cabeça. - Chegas, pegas no documento, sais e apanhas um táxi. Direitinho para casa. Ok?. – Disse o amigo encurtando a distância, a zunir-lhe no ouvido. O licenciado já tinha superado encomendas perigosas. O que era diferente desta vez? Perguntou-se. Seriam capazes de matar?
Ao cruzar a ponte do Tâmega a noite fazia-se um bocado mais solitária. As ruas perdiam-se ao fundo entre o nevoeiro, e atrás ficava o acorde interrupto das correntes. Havia algo de poético naquela paisagem governada pelo frio invernal não sendo pela perturbação desse sexto sentido que os repórteres desenvolvem documentando guerras. Era a mesma sensação que experimentara em Iraque, mas não fazia sentido num lugar como Chaves. Fosse o que fosse aquilo não tinha fundamento – ou talvez sim. Aqueles documentos pesavam demasiado para serem simplesmente papéis.
Subitamente uma imagem solitária irrompeu ao longe. Alguém subia pela rua. Qualquer pessoa, um vizinho. Duas pessoas encurtavam distância cada vez mais como se lhe fossem perguntar qualquer cousa. Da Silva deslocou-se para o outro passeio. Os visitantes também o fizeram. Era claro. Eles procurá-lo-iam. Instintivamente deu volta e deitou a correr quando as inquietudes que o vieram acompanhando personificaram-se noutro acossador. Não tinha para onde fugir. Avançavam dum lado e doutro e ele no meio, impotente. Uma luz pobre duma taberna revelou-lhe uma saída, mas a dous passos da porta alguém o pegou do braço.- Espere. – Disse uma voz seca e autoritária. – Não percebe nada, verdade? Entre, vamos!- Os outros chegam a tempo de entrarem na taberna Machado. Pareciam doutra época. Igualmente vestidos cuma gabardina e um chapéu preto. Também vestiam luvas de coiro.- Quatro vinhos, por favor – Pediram enquanto um deles o fitou fixamente, desafiante.- Leva quê, nessa pasta?- Ao senhor não importa. – Ripostou Da Silva com decisão, ocultando o seu temor.- Aqui quem faz as perguntas sou eu! Está a perceber?
Da Silva sentiu um calafrio a lhe percorrer o corpo. Milheiros de pensamentos passavam pela cabeça. O estômago trabalhava como se estivesse a digerir uma pedra. Buscava qualquer solução a um conflito que parecia irresolúvel. Enquanto calculava as suas hipóteses sentiu o cano duma pistola nas costas. Um deles estava a apontá-lo discretamente.
- Nem o intente. Sei o que está a pensar. Se berrar mato-o. Agora beba. Atue com normalidade. Beba! – Disse aquele que empunhava a arma. Tiraram-lhe a pasta das mãos e verificaram o conteúdo. Apenas um olhar entre eles foi suficiente para se aperceberem. Eram os documentos que procuravam, documentos que nem sequer o jornalista tivera oportunidade de observar. O copo de tinto tremia nas mãos enquanto compartilhava balcão com flavienses unicamente intrigados pelas vestimentas próprias de três noviorquinos dos anos ’40. Fosse como fosse, o seu sequestro passava desapercebido. Da Silva só podia confiar em que o deixassem partir agora que já tinham aquilo que procuravam.- Quanto é? – Disse o primeiro deles.
- Quatro euros.- Fique com o troco.
- Obrigada.- Obrigados nós. Reservadamente, a safanões, expulsam-no. Caminham mais à frente até um recanto discreto, com pouca luz. Lá esperava uma viatura preta.
Antes, quando preparavam
a grande operação

Chegaram montes de informes de balística. Conseguira-se identificar algumas armas. Procediam de Colômbia, dum lote desaparecido num quartel militar de Bogotá. Também desapareceram explosivos, se calhar os mesmos explosivos que detonaram no tiroteio. Outras munições eram de fuzils M 16 de procedência desconhecida. Os investigadores da polícia começavam a baralhar diversas hipóteses que guardavam relação com o tráfico de armas. Revisavam todos os dados que guardavam a respeito de redes criminais de origem hispanoamericana. O comissário desesperava-se no seu despacho, rodeado dum monte de papeis. Nãos deixava de receber telefonemas. Todo o mundo exigia informação, mas aquele não era um caso fácil.

Uma voz autoritária disse – ¿Cómo es esa ave negra?
- Sabemos que sois da Gaivota Preta e vós sabeis quem somos nós- Respondera Miro. Alguém tinha telefonado em vistas do anúncio.
- Temos dados, informação que vos pode pôr em perigo. Apenas queremos dinheiro para iniciar uma nova vida, uma vida de liberdade. Merecemos uma indemnização pelo que nos fizestes. A informação pelo dinheiro. É simples.
- ¿Cuánto?
- Digamos que quarenta mil euros por cada um de nós.., trezentos, trezentos mil euros.
- Quedemos en..
- Na alameda, em Compostela, amanhã de manhã, às 12:00 a.m. onde a estátua das Marias.
- Bien. Ahí estaremos. No intenteis nada de lo que os podais lamentar.
A comunicação fechou-se. Funcionara, a iniciativa funcionara. Só restava preparar tudo.

Da Silva foi torturado

Estava sozinho numa pequena cela. Da Silva acordou lá. Não havia nada mais do que uma grande porta metálica. Intentou erguer-se, mas não puido. Estava sugeito a um cadeirão como os que se usam nas clínicas dentais. O único que lembrava era o interior do auto preto. Não tinha o telemóvel consigo. Estava incomunicado. Havia um cheiro a éter no ambiente. Todo eram móveis de metal cheios de recipientes e instrumental médico. Acima havia uns potentes focos de quirófano. Da Silva estava lá sequestrado e não havia nada que pudesse fazer. Resistia com todas as suas forças, mas inutilmente. Intentava forçar as ligaduras quando em breve sentiu passos e pouco depois falar. Abriram a porta metálica um homem com bata de médico e outros três de gravata. O doutor tinha rotulado no peito uma gaivota preta cum i maiúsculo como letra inicial da palavra “investigação”. Um deles, o mais maior, gordo, baixo e careca achegou-se a da Silva.

- Le vamos a hacer una serie de preguntas. Por su bien haga caso y responda a la verdad. Dum modo u otro va a hablar. ¿Para que sufrer inutilmente? Díganos lo que sabe y acabemos con esto.

Da Silva irrompeu – Mas, mas.., eu não sei nada. Só que devia ler os documentos que...

- ¡Empezamos mal. Responda unicamente a lo que se le pregunta! ¿Quién es? Dígame su nombre, apellidos, profesión. ¿Qué tiene que ver con todo esto?
- Ernesto, Ernesto da Silva Lopes, de Lugo, atualmente residente em Chaves por motivos de trabalho. Sou jornalista. Escrevo para alguns jornais e eventualmente trabalho na rádio. Eu não sei o que é tudo isto. Apenas recebi a pasta. Alguém me disse que devia tirar à luz algo mui importante.
- ¿Quién? Dígame.
- Nem sei. Ligou para mim de telemóvel. Combinamos três vezes. Na terceira deu-me a pasta que os senhores me tiraram. Inácio, seu nome é Inácio.
- ¿De qué conoce a Ignacio?
- Apenas disso. Já disse que eu não o conhecia.
- Es posible que estea mintiendo. ¿Cómo se que lo que me está diciendo es cierto?
- Juro-lho, de verdade, digo a verdade. Tem de acreditar em mim. Não minto, de verdade.
- ¿Qué debía hacer con eses documentos?
-Lê-los, em casa, com calma. Devia escrever um artigo ao respeito. Ainda nem tivera tempo de abrir a pasta. Seja o que for, eu não sei nada. Deixem-me marchar, não direi nada. Dou-lhe a minha palavra de honor.

O careca suspira. Faz uma pausa. Seguidamente diz ao homem da bata:

- Doctor, tengo que estar seguro de lo que dice. Inyéctele esto. Veamos si dice algo, si insiste en las mismas respuestas, si dice algo más.
- Não me parece que seja um criminoso?
- En serio, doctor, este hombre está implicado en algo de lo que usted no tiene ni idea. Cumpla con su trabajo.
- Não me obrigue a fazer isto. Eu fui contratado para investigar, não para interrogar a ninguém.
- Cumplirá con lo que se le ordena. Cumpla el contrato que firmó o de lo contrário ya sabe lo que le espera.
- Está bem, mas acho que este homem diz a verdade.

Antes, quando o capturaram
ao cientista

- Todos prontos? - Perguntou Miro.
- Prontos.
- É hora de eu ir ao encontro. Vós aguardais lá abaixo onde acordamos, ok? Isto é algo que hei de fazer eu só. Não podemos fracassar.

A equipa descera rua abaixo no Land Rover. Miro avançava caminho da alameda cum CD nas mãos. Lá aguardavam por volta de seis pessoas que desceram duma carrinha preta. Miro não vacilava, estava certo do que fazia.

- Ese CD. ¿Son los documentos?
- São – Disse Miro – E o dinheiro?
- Está en este maletín.

O homem encurtou distância e abriu a mala exibindo um sem fim de bilhetes.

- Dinero en efectivo. Ahora deame el CD.
- Está bem.
- Espera. No tan rápido. Primeiro verificaremos su contenido. Por cierto, como sabemos que no teneis más copias?
- Terás de fiar-te da minha palavra.

Um dos homens levou o CD à carrinha, mas em breve voltou.
-Tudo bem?
- Está todo bien. Ahora unicamente falta capturarte.

Inesperadamente todos tiram uma pistola, mas Miro já contava com isso. Dispararam contra ele e nenhuma bala o alcançava. Mais uma vez fazia gala das suas habilidades extraordiánrias. Ele também ocultava uma arma. Detrás das árvores respondia ao fogo inimigo com precisão. Era Ares em campo de pólvora, Zeus em ira desde o Olimpo, Breogám comandando aos seus homens cabo da Irlanda para vingar a morte do seu filho Ith, Thor contra os gigantes. Ninguém o podia deter. Logo matara a quatro e desde bem longe ao motorista da carrinha. Telefonou e em breve apareceu o Land Rover. Miro disse-lhes aos camaradas que na carrinha havia mais alguém, que havia que abri-la. Inácio acompanhou a Miro. A disparos rebentaram o feche das portas de atrás. Dentro havia um cientista cuma bata branca. Foi amordaçado e guiado até o Land Rover. A operação fora tudo um êxito.

Na cabana do bosque, numa habitação escura, atado a uma cadeira. A equipe interrogava ao prisioneiro.

- Onde está o búnquer? Contesta ou rompemos-te o pescoço. Responde!
- Eu não sei. Unicamente obedecia ordens. Devia aguardar na carrinha para sedar aos possíveis reféns.
- Quem és? Sabes o que de todo isto? Que nos fizestes? Para quê? Fala!
- Comecei quando apenas era um jovem recém doutorado. É um bom trabalho. Pagam bem, muito bem. Disponho dum laboratório de última geração, um sonho feito realidade para qualquer científico. Apenas investigo no que tenho de investigar. Até há pouco tempo não sabia o que acontecia na realidade, não me falam do que há nas outras estâncias do búnquer nem pergunto. Tudo aquilo é alto segredo. Trabalho para uma instituição segreda. E o que importa? Há agências de inteligência por todo o mundo que operam no mais estrito segredo. Um bom trabalho é um bom trabalho. Dizem-nos que as pessoas com as que experimentamos o DGH, o detonador genético humano, são presos perigosos, terroristas, violadores e assassinos, do pior da sociedade. Sei lá, cada vez que o penso parece-me impossível. Esses filhos da puta são.., têm ambições tão surrealistas que semelham tiradas dum cómic de Marvel.

Iniciáramos os estudos com todo tipo de esteróides, mas os resultados eram péssimos. Conseguíamos melhorar o rendimento atlético dos indivíduos e ainda assim aquilo era insuficiente, havia que ir mais longe e sem os estragos metabólicos que causam os anabolizantes. Achávamos que aquelas pesquisas estavam destinadas a alongar a esperança de vida do ser humano, mas a realidade é bem diferente. Esperavam do laboratório a fórmula do guerreiro perfeito. Eu disse, não é? Eu disse que parece mesmo algo próprio dum cómic, da ciência fição, mas.., aquilo foi. Vós sois o produto dessa investigação. Por acaso nãos percebeste que o teu corpo responde à atividade física dum modo sobrenatural.., hein?

Os anabolizantes não serviam, assim que fiz com que a equipa de investigação se centra-se na identificação dos genes responsáveis da força, velocidade, reflexos, intuição... Para isto era necessário ampliar indefinidamente o número de mostras genéticas. O senhor Sánchez dissera-me que não havia problema, que destinaria os recursos que fossem necessários. Fora ao seu despacho com vagas esperanças de conseguir o que os cientistas encomendávamos, mas ele respondeu afirmativamente. Fez buscar nas intermináveis bases de dados perfis de atletas e soldados extraordinários. Dum modo ou outro lograriam fazer-se com o material genético necessário.

- Falas como se fosses inocente?
- E sou. Este segrego, todos estes anos.., necessito liberar-me do seu peso. Eu não pretendia fazer mal a ninguém.

-Continua com o que estavas a dizer. Não tenho toda a vida para ouvir-te.

-Comecei a suspeitar quando me disseram que tinha de ir a uma cela visitar a um preso. Não é habitual que nos convidem a visitar aos reclusos. Eles estão no andar inferior ao qual os cientistas não temos acesso. Enfim, acompanhei ao oficial até onde ele me indicou. O elevador abriu a um corredor escuro flanqueado de portas numeradas. Caminhamos quase até o fundo, até uma porta diferente que tinha rotulado “interrogatórios”. Lá aguardavam outros dous oficiais e o senhor Sánchez, quem me disse que devia estimular a um preso a confessar. Como? Perguntei. Sánchez mirou para os seus sapatos e depois para os meus olhos. Como seja necessário. Use drogas, o que for. Respondeu. Neguei-me, mas não tinha alternativa. Assinara um contrato no que se me exigia manter em absoluto silêncio todas as atividades desenvolvidas no laboratório. Devia obedecer as ordens sem questioná-las. Caso não cumprisse o contrato, seria encarcerado.

- Como pudeste assinar um contrato assim?

- Era muito dinheiro e nem imaginava que se pudesse dar uma situação como essa. Necessito esse dinheiro. Não acreditava que estivesse a fazer algo mau. Não estamos na Alemanha nazista. Naquele momento intentei forçar uma ética que me permitisse seguir para a frente. Insistiam em que era um criminal mui perigoso que capturaram havia escassas horas e que resultava imprescindível tirar-lhe certa informação pelo bem de muitos. Que quer que fizesse? Se não o fazia eu outro se prestaria ao trato.

- E esse senhor Sánchez é quem?

- Sánchez é o meu superior, quem assina os meus cheques e a quem tenho de entregar-lhe as memórias dos estudos realizados no laboratório. Acho que se chama Mariano, Mariano Sánchez Pozo, sim, isso é, Mariano Sánchez Pozo.

- Que mais? Onde mora? Onde podemos encontrá-lo?

Nem sei. Não se nos permite saber dos nossos subordinados e superiores mais que o estritamente necessário. Só sei que é um homem baixo, mui gordo, cuma grande papada e pança. É careca salvo pelos poucos cabelos que lhe aninham detrás das orelhas. Sempre viste igual, viste de gravata, em preto. Ah, sim, também usa lentes quando tem de ler algum documento e sempre, sempre fala castelhano.

- Está bem. Vamos a cobrir-te a cabeça com o mesmo saco com o que te trouxemos e levar-te à cidade, às portas da polícia com toda esta informação, informação para descobrir à Gaivota Preta. É hora de que assumas a responsabilidade dos teus factos. A polícia ocupará-se de ti.

- Inácio, gravaste tudo?
- Gravei. Agora mesmo me ponho a transcrevê-lo.
- Liga para da Silva para combinar com ele e entregar-lhe o material.

Finalmente, quando “La Gaviota Negra”
foi descoberta.

O comissário recebeu um envelope. Vinha acompanhando a um homem com as mãos atadas ás costas, um homem que alguém deixou nas escadas à entrada da comissaria. Parecia que tudo começava a ter sentido. A sociedade segreda “La Gaviota Negra”.

Estava a lê-lo, mas não podia dar credo. Uma cousa assim só podia ser fantasia, pensou. Mas alguém teria suportado tantas dificuldades apenas por uma fição. Não. Aquilo era algo sério. Contudo, uma organização secreta, alta tecnologia e manipulação genética em humanos. Algo tinha de haver errado ou quando menos de exagerado. Reflexionou mais um bocadinho. Suspirou e guardou novamente os documentos na gaveta. Pegou o telemóvel e telefonou ao seu superior.  

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sonata de um adeus


Por Azaharys

A minha harpa, a minha formosa e adorada harpa!... Ela, que soava alegre como um manancial de primavera, hoje só foi um adagio de tristeza que ressoou no meu interior e acabou por provocar as minhas tempestades. Tanta vontade tinha de senti-la próxima! Pensei que me confortaria com isso; mas nestes instante no que pôde escutar as suas envolventes notas escorregando pela regandija da porta no meu encerro , trazendo luz à minha obscuridão, só um desejo me atingiu inteiramente: Eu queria que me levasse com ela! Não me importei que não fosse uma intérprete experta nem que os sons que tirara de mim fossem queixumes pouco afinados. Se ela tivesse podido libertar-me deste estreito quarto fedorento!... Voltar a sentir as suas pernas apertadas ao meu corpo teria sido estar no céu, voltar sentir a sua mão frágil percorrendo o meu mastro, e a outra mexendo o arco de forma imprecisa para jogar com as minhas cordas, teria sido como morrer no mais excelso e puro dos prazeres, ainda que o mestre já não estivesse aqui para guiá-la, para lhe ensinar a forma correcta de fazê-lo.
—Onde está o André? —perguntou a minha harpa, e foi que me fez tremer ao ouvir o meu nome. Ela não me tinha esquecido. Depois de dous meses de morte do mestre, eu já tinha perdido a esperança de que viesse me procurar.
—Estás a te referires ao meu esposo?... De seguro está no inferno, compondo romanças para os demónios. O infame deixou-me arruinado! —respondeu a trombeta destemperada, essa mulher gritante e estridente; sempre tão aceda e tão ferinte.
—Sabes bem que me estou referir ao seu violoncelo. Deixou-mo ver no seu testamento. Venho a exigir que mo entregues —encarou-a a minha harpa, e a sua voz interpretou aquelas palavras com um mezzo-forte que me encantou.
Nesse momento a campainha da porta principal, no primeiro andar, tintinou.
—Nunca vou perceber a mania que o meu esposo tinha de lhe pôr nomes de pessoa aos instrumentos de ele possuía, especialmente ao violoncelo... Baptizá-lo com o seu próprio nome, há que ver que loucura...! —queixou-se a trombeta enquanto se punha de pé—. Desculpa, querida. Estava a aguardar alguém. Volto desseguida. —A sua voz pareceu mais comedida do que antes, mas seguramente que se tinha confrontado com a minha harpa com a sua postura de rainha, altaneira e digna, ainda que por dentro seguisse sendo a mesma prostituta trepadora e vulgar do bairro de do Vilar em Ourense.
Depois de que ela tivesse baixado pela escada, escutei à minha harpa a caminhar pela sala; quiçá se deteve para contemplar a pintura que Bazille fez para o mestre e para mim. Pôde sentir nesse momento a sua alma, pôde inclusivamente intuir os seus pensamentos: aquilo foi uma melancólica composição de recordações dolorosas, impregnadas do vazio que deixa o engano. O mestre e a minha harpa... Com que paixão e entrega se amaram! Foram tão felizes durante os anos que estiveram juntos, antes de que ele perdera o rumo, antes de que os sonhos que tinham atingido foram ultrajados pelo ego, pela necessidade da fama e o aplauso, pelas associações que ele estabeleceu com homens pudentes que alcançavam a conseguir apresentações nos lugares mais prestigiosos da Europa, relações de negócios que exigiam uma desvirtuada vida social, cheia de excessos . O mestre não era como eles! Eu sei-o, eu conheci-o, senti-o... ele me fez, fabricou-me, deu-me vida e também um nome; ele era um ser humano frágil demais, débil demais e influenciável...
Ainda lembro quando eu e o mestre tivemos conhecido a minha harpa no Auditório de Compostela; ele ainda era um homem pobre e falto de roce social, nem sequer tinha dinheiro suficiente para repassar o verniz com a frequência que eu requeria. Vínhamos de conseguir um lugar na filarmónica e, ao terminar a função, ela estava lá, detrás do cenário. A sua presença foi a mais formosa sinfonia que eu tivesse escutado em toda a minha vida: os olhos destilavam sons que pareciam coros de anjos, o seu riso fazia que ganhasse em formosura aos trinos mais perfeitos dum piano e  o seu cabelo estava a se mexer ao ritmo dos violinos que os seus modais e maneiras faziam soar na minha mente. No entanto, do seu interior surgia aquilo que se haveria de converter na minha inspiração para o resto da minha vida; eram notas que pareciam pingas de orvalho geradas num amanhecer de quimeras, como o som duma harpa que cantava as melodias mas lindas da existência. Demorei-me em sair do estupor inicial que a música da sua alma me produzia, mas desseguida senti o meu mestre turbado e contraído perante a sua juventude e beleza. No entanto, não só a formosura da minha harpa tinha diminuído a personalidade dele, mas também o obscuro som de um imponente contrabaixo , o pai dela, quem com descaro se atreveu a oferecer uma grande soma de dinheiro para fornecer secretamente o capricho da sua filha consentida, o de apreender a tocar o violoncelo; atividade que nem se pensava para uma dama. O meu mestre não pôde negar-se, ainda que eu sei que foi mais do que por medo a ele, por atração que sentiu por ela. Naquela altura, ele não teve o valor para tentar engatar com ela. Vá! Como é que se arrependeu aquele contrabaixo de tê-lo contratado, depois, quando a minha harpa fugiu com o mestre. Infelizmente nunca soube que a ideia tinha sido dela... Aaaah! Ocasionalmente era tão intempestiva, como uma melodia súbita que surge num arranjo musical e muda a obra na sua forma e essência. Foi tão fácil para ambos nos namorarmos dela!
Ao escutar a trombeta destemperada voltando à sala, as minhas recordações é que se derrubaram; e suponho que também o fizeram os da minha harpa.
—A minha visita vai aguardar até que acabe este assunto contigo —disse-lhe muito parcamente—. Tenho-te uma má notícia. O violoncelo não está.
—Como é que não está? —perguntou a minha harpa, incrédula.
—O mestre incinerou-o pouco antes de morrer.
—Não!, não pode ser! Ele jamais... jamais teria feito uma cousa semelhante!
—É pena, querida. As suas cinzas ainda estão no prédio. Não quis mandar que as limpassem, por se vinhas, para que visses por ti mesma a loucura na que ele caiu. Imagina! Queimar um instrumento que valia tanto dinheiro —disse-lhe, atuando a sus mentira com virtuosismo. Que malfadada!  Nesse momento percebi por que é que depois da morte do mestre mudou as cravelhas e as cordas: foi para enganar minha harpa.
—Não! Não pode ser, tenho que confirmar de que se trata de Ricardo —A angustia na voz da minha harpa fluiu num nervoso tremolo. Quase pôde ver como a candura e o brilho dos seus olhos zarcos ficavam desiludidos.
—Hei de ensinar-to. Segue-me —incidiu a trombeta com tom vitorioso.
As duas saíram da sala, e o silêncio trouxe-me o presságio de que seriam os últimos momentos perto dela. Foi ali quando a culpa me possuiu, criando uma desarmonia que me destemperou por inteiro. Três anos! Três anos desde que a minha harpa abandoou o meu mestre; se ela tivesse sabido nesse momento quanto ele a amava, o arrependido que ele estava, perdoá-lo-ia com os olhos fechados; teria ficado ali. Mas ele nunca pôde exprimir com palavras o que era, em verdade, importante; padeceu do mal de muito músicos, que acreditam que com as notas bem postas numa formosa melodia já o dizem tudo. Era tão pouco inclinado a falar do que havia no seu interior, e eu acreditava que ela, a pesar de compreender os sentimentos que ele punha em cada uma das suas obras, aquela vez, sim necessitava das palavras profundas e sentidas que nascem do coração.
Descobrir a infidelidade do mestre foi para a minha harpa a ruptura das suas mais belas melodias, e eu... eu estava zangado com ele, também. Como era possível que tivesse traído a minha harpa com essa vulgar trombeta destemperada, harpia manipuladora com a que depois terminou casando! Enojei-me tanto que quebrei a simbiose com ele e ali esteve o meu mais grande erro. Ele acreditou ter perdido a sua inspiração quando a minha harpa se foi; pois sabia que ela o perceberia se lho exprimia  por meio da música; mas essa vez é que eu me neguei a cooperar: de mim, só conseguiu sons rudes e dissonantes modelados pela minha raiva. Agora é que me arrependo; Quanto me tenho arrependido de tê-lo deixado só! Refuguei para ser o seu canal, a sua ponte... É que eu queria que ele falasse! Que deixasse de se refugiar em mim e que fluísse nas suas palavras como um rio, como a música que deixa sair tantos sentimentos sem contenção, numa harmonia vibrante e sincera; ela o merecia.
O meu mestre! Ai, o meu pobre mestre!... tão sensível, tão formoso de alma, mas tão débil perante o mundo. Perdeu a minha harpa, a nossa harpa, e o seu mundo interior azedou-se até que o seu corpo adoeceu de leucemia. Eu escutei como nota a nota a dor foi consumindo-o; foi-se extinguindo. Foi um morendo triste e lento.
Depois destas lamentações, na negrura do meu encerro, escutei novamente passos pela escada. A trombeta destemperada entrou primeiro. Pôde imaginar o sorriso de triunfo no seu rosto; e, por trás, vinha a minha harpa, tentando reprimir um pranto explosivo.
    Toma, presenteio-te a pintura que o Bazille fez do meu esposo e o seu violoncelo, assim não te vais com as mão vazias e poderás lembrá-los aos dous —disse-lhe a trombeta, fingindo conexão de cara a ela enquanto despendurava a pintura da parede.
O pranto da minha harpa estalou finalmente num fortissimo agitatto, como uma trovoada que se descose com amargura incontornável; ali percebi que, a pesar de todo, incluso depois da sua morte, ela continuava a amá-lo; e eu, eu que era quase um pedaço dele, o único que queria era permanecer ao seu lado para enchê-la de melodias que aplacassem a sua dor.
A minha harpa e eu fomos os únicos que realmente o conhecemos, o compreendemos ... e por obra de uma vulgar trombeta barata, o consolo de permanecer ela comigo e eu com ela, é que nos foi negado. Pus-me a chorar também, ainda que que não havia qualquer mão que tirasse as tristes melodias que nesse momento me assolagavam.

Não houve mais sons do que os dos seus passos baixando a escada; e eu fiquei sumido no mais frio e amargo silêncio. Nunca gostei do silêncio, excepto o que vai da mão dum adeus obrigado.
Não me dei conta em que instante a trombeta destemperada voltou à sala, junto à visita que tinha ficado aguardando na entrada: um trombone de rejo metal. Sumida na minha pena, também não tomei atenção à longa conversa que sustiveram; nem me inteirei do acordo económico ao qual chegaram, até que escutei dizer:
—É um instrumento único, hás de vê-lo. O seu cliente japonês estará comprazido. Se me ajudar a mexer a biblioteca hei de lho agradecer. Detrás dela está a pequena adega onde o guardo. Vc. Sabe que um tesouro assim é que convém tê-lo longe das olhadas ambiciosas.
Agora é que o percebo: “longe”... assim que longe da minha adorada harpa é que me vou, para me espargir em espaços desconhecidos as sentidas notas que na minha madeira hoje se gravaram e, com certeza, mudaram para sempre o som da minha voz.



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Buraco de Rato

Por: Fabio da Silva B.

Era apenas mais um final de tarde de calor intenso pela cidade de Vigo. Trabalhadores corriam atrasados como baratas envenenadas. Menores infratores e mendigos transitavam observando supostas presas. Alguns punks se reuniam na esquina, enquanto contavam moedas para comprar uma garrafa de qualquer coisa e argumentavam sobre o show de noise que aconteceria naquela noite. Universitários sentavam nos bares para debater sobre algum ilustre intelectual morto com sua insípida lógica acadêmica, ao som de Chico Buarque e outros nomes da MPB. Enquanto isso, Pedro ia com a namorada, conhecida como Boceta de Vaca, a um motel barato das redondezas. Chegando lá, começaram a se agarrar como dois lutadores de sumô.

No meio da mistura de salivas, seus corpos despencaram sobre a cama. O estrado rangeu e as mãos começaram a explorar cada canto dos corpos. Peças de roupas eram atiradas a esmo. Os seios se espalharam ao se verem livres do sutiã, exibindo as enormes “calotas”. Tirando as botas da menina, Pedro apreciou um pouco seus pés e caiu de boca no dedão atrofiado da “donzela”, enquanto aspirava o agradável odor. A língua foi deslizando pela sola do pé, causando frenesis no corpo branco e flácido de Boceta de Vaca. Continuou alimentando o banho de gato até chegar à virilha cabeluda de sua amada. O suor temperou toda aquela carne em que se deliciava sem pudor. Continuou o passeio linguístico até chegar às axilas, onde ficou um tempo a mais entre beijos e lambidas. Adorava axilas. Principalmente as maus raspadas como aquelas.

Boceta de vaca já agarrava o membro do namorado com força entre os dedos dos pés, mostrando suas habilidades. Nesse momento, Pedro chupava os dedos de sua mão. Algumas buzinas tentavam trazer o engarrafamento e tudo o mais do desinteressante mundo exterior para aquela cama. Pedro agradeceu a Satanás por aquele momento sublime, em que não precisava compartilhar da rotina dos demais seres tidos como humanos. Passou a mão pela vagina da companheira sentindo o enorme grelo e confirmando o porque do infame apelido ao enfiar seu dedo na genitália mais que dilatada. Ela já estava em “ponto de bala”. Já estava mais que encharcada. Pensou em voltar para entre as pernas e sentir um pouco do sabor de todo aquele smegma, mas ela o surpreendeu e rolou, se pondo por cima. Segurou o “pau” com violência e caiu de boca sem dó nem piedade.

O ar condicionado só fazia barulho e os corpos se dissolviam. Ela sentou no membro incandescente largando um suspiro doloroso. Aranhas e traças assistiam a tudo de cantos escondidos. Várias posições alegraram os coitos que se seguiram. Aquela sagrada sensação de que nada importa transbordava. O inimaginável era permitido sem precisar pedir licença. Antes de voltarem para o mundo, tomaram um banho e Boceta de Vaca pediu um minuto para esvaziar o intestino. Ao sentar no vaso, uma enorme ratazana que vinha pelo esgoto entrou pelo cu da “madame”. Ela sentiu uma dor lancinante. Pedro se assustou com o grito.

— Tudo certo aí? – Perguntou com o ouvido encostado na porta. Só a idéia de ver a namorada cagando o deixava excitadíssimo.
— Acho que hoje você caprichou. Estou arrebentada.
Os dias se passaram e nada mais saía pelo “rabo” da coitada. A barriga começou a inchar e dores terríveis assaltavam-na por todo o momento. Procuraram um médico e durante o ultrasson visualizaram o invasor.

— A senhora está grávida. – Declarou o decrépito doutor.
— Grávida?! – Assombraram-se sem entender.
— Mas a criança apresenta estranhas deformações e parece estar fora do útero. É algo tão bizarro que posso garantir nunca ter visto.

Aquilo já era demais. Não tardaram a decidir pelo aborto.

Na semana seguinte, as dores causadas pela prisão de ventre e pelo roedor se alimentando de seu intestino não a deixavam mais andar. Pedro chegou abatido.

— Está aqui a solução. Tome esses comprimidos e nos livraremos desse pequeno infeliz. Não precisamos da burocracia hospitalar para resolver nossos problemas.

Boceta de vaca pôde perceber a incerteza na voz de Pedro.

— É o melhor mesmo, não é? Às vezes penso que você está concordando com isso apenas porque não desejo esse monstrinho.
— Estou vendo o que ele está causando a você. Isso não é uma gravidez normal. Já transei com uma garota que teve um filho meu uma vez e não foi assim. Isso que está acontecendo não é normal. Ele está vivo fora do útero.
    AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA...

As contrações aumentaram. O grande acúmulo de fezes já expulsava a ratazana com toda a pressão possível. Pedro deixou os comprimidos caírem.

    Puta merda. A cabeça do desgraçado já está saindo. E é como o médico falou. É uma aberração. Mas espera. Ele tá saindo pelo seu cu.

A menina já estava roxa quando o animal foi expelido, acompanhado pelo jato de bosta e sangue. Pedro correu e pegou a vassoura que repousava no canto da quitinete de Boceta. O animal estava gigantesco, como se tivesse passado por algum tipo de mutação intra-intestinal. Correu para a quina da parede e se pôs de pé. Pedro o seguiu com a vassoura pronta para o ataque.
— Você pode ser meu filho, mas... — As mãos fraquejaram soltando a vassoura. — Ah... Meu deus. O que estou fazendo? O monstro aqui sou eu. — Caindo de joelhos estendeu os braços. — Como posso ser assim... Tão egoísta.

A ratazana o olhou por algum tempo e correu para a janela, que pulou depois de uma rápida escalada. Pedro entrou em desespero e se jogou em seguida, tentando salvar seu rebento. Enquanto seu crânio explodia na avenida, Boceta de Vaca se via as voltas com a agonia do último suspiro. A ratazana correu para o lado oposto e entrou em um bueiro. No dia seguinte os jornais lucravam com as manchetes sobre o acontecimento macabro em uma quitinete do subúrbio. O calor continuava impossível e os carros buzinavam com trabalhadores apressados correndo entre eles.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

1701



Autor:Fabio da Silva B.

Acordei ainda inebriada pela manhã de prazer com Morgana. Morgana... Era assim que gostava de ser chamada. Minha machinha. Passei as mãos pelo seu corpo nu. Tomei banho e me arrumei. Tinha cliente marcado cinco da tarde. Queria sair antes que ela acordasse. Se me visse indo, poderia estragar tudo com suas crises de ciúme. Sabia que meus clientes tinham algo com que não poderia competir. Isso a deixava louca. Mas, ela se esquecia do mais importante. Eram apenas clientes. Depositei o dinheiro da cerveja em baixo do cinzeiro que transbordava de bingas e saí.

Ao abrir a porta, o senhor que mora em frente abriu a janelinha. 
- Boa tarde, princesa!

Coitado. Deve passar o dia esperando eu abrir a porta para olhar pela janelinha com aquela cara de tarado e me saudar com suas frases feitas. Balancei a cabeça com um sorriso cínico e prossegui. O elevador ainda estava com defeito. A proprietária deveria abater isto no aluguel. Um dos argumentos usados para cobrar esse absurdo por mês, foi o fato do prédio ter elevador. Ratos e baratas disputavam os cantos. O porteiro está sempre dormindo, bêbado.

- Como é Seu Oligário? Assim vai cair da cadeira.
Ele abriu os olhos assustado.   
- Oi Dona Clarice... Bom dia...
- Boa tarde!
Respondi com o mesmo sorriso que havia usado para cumprimentar meu vizinho. Era uma forma de agradar. Sabia que eles gostavam quando usava esse artifício. Descendo os degraus que desembocavam na rua, ainda pude ouvir seu suspiro.

- Gostosa !!!

Deve ter voltado a cochilar logo que dobrei a esquina. Veio um táxi. Fiz logo sinal. O motorista parou. Entrei séria. Disse o endereço acompanhado de um discreto sorriso. Cínico, como todos os outros. Desci no restaurante combinado. O cliente já estava me esperando na varanda, tomando sua Tequila com limão e petiscando algo que daquela distância pareciam azeitonas. Assim que cheguei me elogiou, como sempre. Esqueci de conferir se eram mesmo azeitonas no pratinho. Conversamos sobre banalidades. Ele era jovem, bonito e tinha dinheiro. Nunca entendi porque precisava de meus serviços. Qualquer mulher poderia aprender a manusear os consolos de que tanto gostava, sem maiores sacrifícios. Pedi suco de laranja. Dentro de meia hora estávamos no motel.

Eram por volta das vinte e uma quando pedi que me deixasse na boate. Foi uma noite movimentada. Morgana apareceu perto da hora de fechar. O segurança criou problema por ter ordens de não deixa-la entrar. Na última vez abriu um gringo a facadas e deu a maior merda. Conversei com ela, mas não adiantou. Deve ter bebido a tarde toda. Saiu me amaldiçoando e disse que quando voltasse conversaríamos. Suspirando entrei. Ela sabia que ficaríamos na pior se arranjasse um desses empregos de salário mínimo. Atendi mais dois clientes e fui para o banho. Algumas meninas dormiam por lá, mas se não fosse para casa, ia ter problemas.

O táxi que havia pedido já estava esperando. O motorista tentou puxar assunto, mas eu não estava para muito papo. Só pensava em Morgana e na chateação que iria ter quando chegasse em casa. Estava torcendo para que ela estivesse na rua. Pelo menos chegaria bêbada, ao invés de me alugar com suas crises de ciúmes. Às vezes penso que seria melhor morar sozinha. Ou então, voltar para minha terra. A família ficaria feliz em me ver voltar. Mas agora não dava para isso. Tinha de juntar mais dinheiro. Estava pensando em comprar um carro. Mas carro era perigoso. O último que tive Morgana estraçalhou contra o poste. Quase perdi aquela danada. Se pelo menos tivesse juízo naquela cabeça...  Para que beber assim. Mas também, se não beber, fica pior. Ninguém agüenta. Ô coisinha braba que fui arrumar.

Quando nos conhecemos se vestia de cigana e botava cartas. Fui por indicação de uma amiga e realmente encontrei meu destino. A própria cartomante. Aqueles brincos enormes... Ficava linda com aqueles lenços. O nome havia tirado não sabia bem de onde. Disse que lembrava ter ouvido em algum lugar.  Coisas daquela cabeça maluca.

O porteiro estava dormindo. Passei em silêncio. Não estava para sorrisos cínicos. Abri a porta do apartamento. O vizinho da frente também estava dormindo àquela hora. Tomara que Morgana não resolva acordar todos os sonolentos com suas gritarias. A casa estava escura. Ouvi o barulho do chuveiro. Fui para o quarto. Estava tudo revirado. Uma bagunça só.

Deitei e fiquei esperando. Fechei os olhos, para no último caso, fingir que dormia. Ela não veio. Muito tempo se passou. Talvez mais de uma hora. Levantei devagar. O que estaria tramando? Às vezes me assustava com seu lado sombrio. Nunca sabia o que esperar. Bem devagar, fui até a porta do banheiro. Estava entreaberta. Empurrei com cautela. Qual loucura desta vez?

- Morgana?

         Ninguém respondia. Dei uma espiada. Não poderia ser. A silhueta que vi através das paredes plásticas do box registravam algo terrível. Disparei pelo cômodo abrindo a porta que me separava do meu amor. O corpo estava caído. Sem vida. Parecia uma marionete esquecido por seu dono. A barriguinha, inchada pelo álcool, tapava parte de sua xota cabeluda. Abracei-a em prantos sem saber o que fazer. Era o terror jamais sentido. A água nos molhava, enquanto pedia para que se levantasse. Só depois observei o sangue tingindo o chão do banheiro. Ainda não tinha me recuperado quando os policiais chegaram. Não saberia dizer quanto tempo passou, ou como souberam que precisávamos de ajuda. Agora, estou aqui. Tomando banho de Sol no pátio. Nunca saberei o que se passou em nosso apartamento. O número 1701 de um prédio, no centro da Vigo. Fui à única suspeita. Seu Oligário não havia visto ninguém entrar ou sair do prédio. Os vizinhos disseram que brigávamos muito, por isso não estranharam aquela gritaria. Uma coisa é certa e só eu sei. Eu não estava lá. 



Maria de Velhe

               Autor: Dragão Verde (Galiza)

               Maria gostava de sair muitas noites quando tinha tempo. Sextas, Sábados e Domingos eram dias de lazer nos que as reuniões com os amigos, as pequenas viagens em grupo, as festas, bailes, rir e sobre tudo amar, eram o normal.

            Aquela noite, Maria não combinara com ninguém, mas ia até a sala de festas onde sempre haveria alguém conhecido, ou de não o haver procuraria conhecer gente nova para próximas vezes.

            Fazia algo de fresco naquela noite de primavera, pelo que optou por levar uma jaqueta ligeira e uma pequena saca onde levava a sua agenda com telefones por se fossem necessários. Saiu da casa quando a noite governava o céu e alegremente decidiu ir caminhando para desfrutar aquele serão que começava a estrelar-se mas com a frescura agradável com a que nos faz gozar a natureza no mês de Junho.

            Foi baixando de Velhe até as Lagoas e de ali ao centro de Ourense onde decidiu entrar numa sala cheia de gente. Alguns bailavam, outros com o copo na mão e outros entregados ao romantismo às obscuras ao lado dos seus pares.

            Maria dirigiu-se à beira da pista para olhar como se mexia a gente sob aquele forte som musical e aquele violento jogo de luzes que estimulava os sentidos até pôr a adrenalina nos índices extremos.

            A música trespassava o corpo de Maria dum lado para o outro até fazê-la a ela própria parte daquela vaga de ritmo, obrigando-a subtilmente a se mexer. Os seus pés, as suas pernas eram levadas pela embriagante força do som. Em pouco tempo pus-se a dançar de forma instintiva, à vez que os seus olhos percorriam todo o campo de visão que alcançavam, ainda obstaculizada infinitesimalmente  pela fração de segundo de obscuridão entre duas cintiladas de luz de diversas cores que deformavam as figuras daquela massa humana em movimento, tanto mais febril, quanto mais monótono e latejante era o ritmo.

            Cegada pelo mesmo, Maria desfrutou quanto quis durante muito tempo, até que por fim, sentiu a necessidade de recompor as suas forças. Dirigiu-se até o balcão abrindo-se caminho entre a gente, sentindo a suor do pessoal que por ali passava e decidiu beber algo que lhe vencesse a sede que lhe tinha provocado a transpiração causada pela dança continuada durante as horas que esteve deixando-se levar pelo tam-tam impetuoso dos altifalantes.

            Apanhou o copo depois de ter-lho servido o rapaz do balcão e foi até um lugar mais tranquilo. Sentou, descansou e respirou. E ali estivo uns minutos.

            Assim, olhando como a gente se mexia descobriu um homem jovem. Ele olhava para ela com um sorriso agradável. Ela, amável, devolveu-lho enquanto ele com graça começou a se dirigir lentamente para ela sem apagar o seu lindo aceno facial.

-         Posso sentar ao teu lado? –perguntou muito amável-
-         Sim, por favor –respondeu ela não menos amável-
-         Vi-te sozinha... e como eu também o estou... pensei na solidão compartilhada.

Maria gostava daquele homem de voz cálida e bom humor. Com prazer perguntou:

-         Como te chamas?
-         José. E tu?
-         Maria
-         Bem, falta-nos um Jesus.
-         Para que? - disse Maria com surpresa perante tão estranha resposta-
-         Para fazermos um Belém, como no Natal.
-          
Maria perante tão inesperada resposta botou a rir a gargalhadas enquanto José a acompanhava com um não menos intenso riso.

      A entrada para uma boa amizade foi boa e por isso após uma longa conversa decidiram bailar a música romântica. Fizeram-no juntinhos, como se levassem muito tempo a se conhecerem.

      Continuaram por muito tempo até que acabou a festa e embora se sentissem os dous muito bem juntos, estava sendo tarde e Maria devia ir para a sua morada, pois tinha prometido aos seus pais chegar a uma hora prudente. Àquelas horas já ultrapassavam um bom bocado a prudência do acordado e foi por isso pelo que determinaram irem embora. Maria pegou na jaquetinha e na saca e foi-se cara a porta acompanhada do José, quem agradavelmente se ofereceu para levá-la na sua moto.

      Maria aceitou com um sorriso amplo e brilhante penetrando os olhos verdes do José que sorriu ao ver aquela expressão linda da rapariga.

      Apanharam a moto do moço e foram embora, velozmente pelas ruas de Ourense rumo da casa da Maria à qual chegaram em poucos minutos ainda que ficasse nas aforas da cidade.

      Ao chegarem, Maria baixou e não quis evitar se achegar ao rosto do rapaz para lhe dar um beijo que se prolongou durante uns lindos segundos. Depois vieram outros dous, três e mesmo mais quatro beijos e abraços celebrados com muito agarimo entre os dous jovens. Às suas costas o rio Minho e no fundo a Ponte Velha iluminada punha um elemento romântico no seu contorno que fazia que os seus corações acelerassem os seus ritmos unisonicamente.

      Quando finalmente o José acertou a se ir embora, montou na sua moto e voou até se perder pela estrada perante a atenta olhadela da Maria que viu com um lindo sentimento de felicidade como se lhe mexiam uma coleção de borboletas no estômago que lhe davam a entender que aquilo poderia ser o começo duma bela amizade romântica.

      Baixada da nuvem, Maria tomou a consciência de estar na cancela da entrada da sua casa e baixando os seus pensamentos ao nível do comum, mais quotidiano, deu-se conta de ter deixado a jaqueta na moto do José. Preocupou-se por um momento, mas lembrava que tinha combinado com ele de ali a três dias, pelo que entrou na casa mais tranquila e esqueceu o tema até se virem.

      Passaram os três dias. Maria, com a combinação na cabecinha vestiu aquela tarde a roupa mais formosa que tinha para se ver com o José, como acordaram, no mesmo lugar do que a primeira vez.
      Saiu da casa muito alegre e andou com ligeireza todo o caminho que a levava até a sala de festas do centro de Ourense.

      Chegou, entrou e foi em direção ao lugar acordado onde parecia que não tinha chegado quem ela aguardava. Não havia preocupação. Era ainda cedo.

      Sentou e pediu uma bebida para aguardar melhor e combater a impaciência.
      O tempo passava e enquanto ela sonhava com os olhos abertos imaginando-se aquele homem sensível e alegre, delicado e generoso, engraçado e sempre com o sorriso nos lábios.

Sonhou desperta uma boa miga e imaginou situações com ele nas que ela era feliz.
Qualquer outra pessoa que olhasse para ela nesses momentos estaria a vê-la com a visão perdida, sorrindo às vezes... Perguntar-se-ia em que nuvem estaria a viajar a rapariga nesses instantes.

            Assim se passou o tempo.

            Quando voltou à realidade eram as dez e meia, mas o José não estava ali. Que aconteceria?

            Pediu outra bebida ligeira para seguir aguardando enquanto olhava para a multidão por se conseguia distinguir o José entre a gente.

            O tempo foi passando-se e a felicidade da Maria foi pouco a pouco transformando-se em preocupação.

            As onze e meia da noite.

            O rapaz já não haveria de vir. Porque tinha combinado com ela se tinha pensado não vir? Ou quiçá lhe acontecesse qualquer cousa...?

            A preocupação deu passagem a outros sentimentos não tão felizes.
            Dali a mais uns minutos já não aguentou mais. Ergueu-se da sua cadeira e foi para a saída, subiu as escadas, chegou à porta e botou a última olhadela para ver se conseguia localizar a moto do José.

            Nada.

            Maria, com vontade de chorar começou a andar lenta e pensativa. Quiçá não tinha porque pensar mal, quiçá foi que ele não pudesse vir por alguma razão importante e não pôde avisar por não ter o seu telemóvel disponível... ou quiçá aconteceu qualquer outra cousa fora do seu alcance.

            Maria seguia caminhando à vez que também os seus pensamentos ferviam na sua cabeça, Umas vezes tendo em conta possibilidades inevitáveis, outras que se repartiam entre o não querer, ficando ela zangada, ou alternativas funestas que quase a faziam chorar.

            Chegou à casa muito cedo. Dirigiu-se imediatamente ao seu quarto e ali se deixou cair sobre a cama para botar-se a chorar com desesperação.

            Assim passou aquela noite.

            Ao dia seguinte, Maria foi à academia onde estudava uns exames de Estado. O seu rosto indicava não ter dormido nada. Estava triste e sem vontade de trabalhar. Não sabia bem que lhe doía mais: o possível desprezo ou que lhe pudesse ter acontecido algo mau àquele rapaz que não lhe parecia mentiroso.

            Por várias noites seguidas foi à discoteca onde se conheceram com o intuito de se topar com ele, mas sem resultados positivos pelo que começou a pensar na possibilidade de que lhe pudesse ter acontecido algo inevitável embora não acertasse a saber se isso era qualquer assunto relacionado com uma obriga laboral, familiar ou algo pior que afetasse a sua integridade física. Só pensar nisto último arrepiava-a.

            A curiosidade era grande, assim como a incertidão, mas para além de tudo isso ele tinha algo dela: a sua jaqueta. Devia tentar saber do seu paradeiro de qualquer jeito embora não soubesse nenhum telefone de contato, nenhum endereço...

            Tentou lembrar algo que se escondesse na sua memória por se tinha comentado qualquer cousa ao respeito e vagamente lembrou que tinha falado duma aldeia chamada Gundiães. Gundiães!!! Onde ficava esse lugar??

            Com os nervos de quem procura algo útil perguntou a algumas pessoas conhecidas dela e conseguiu saber de dous possíveis Gundiães: um pertinho de Alhariz e outro a poucos quilómetros donde ela vivia seguindo a estrada que passava pela sua casa, rumo Nogueira de Ramoim. Bem!!

            A sua lógica começou a fiar pequenos pormenores e chegou à conclusão de que a última possibilidade era a mais real.

            Ao dia seguinte de se inteirar da proximidade desse Gundiães a poucos quilómetros da sua casa decidiu achegar-se até lá como quem vai dando um pequeno passeio. Vestiu o seu fato de treino e ao serão começou a caminhar como quem faz desporto. Caminhou durante uma boa miga enquanto o sol já baixo e oblíquo ajudava a diminuir o calor que caia desde havia umas horas. Isso facilitava a caminhada da Maria que tomava boa nota de todos os lugares por onde se passava, reconhecendo os seus nomes que por outra parte ela lembrava que foram ditos pelo José.

            Finalmente dali a uma hora de caminho viu o indicativo com o nome de “Gundiães”. Descontraiu a sua marcha e abriu bem os seus sentidos e a sua intuição com a finalidade de reconhecer qualquer cousa que lhe desse um indício relativo ao lugar onde poderia morar aquele rapaz de olhos verdes que tanto a tinha preocupado aqueles últimos dias.

            Reparou em todas e em cada uma das casas que ficavam à beira da estrada sem ver nada significativo, até que a poucos metros diante de si olhou uma moto conhecida. Esta era preta e com duas finas raias brancas nos guarda-lamas, selim amplo para duas pessoas e um autocolante com um GZ na parte traseira.
            Sem qualquer dúvida aquela era a moto do José!!

            Maria, prudentemente aguardou uns minutos. Esteve ali parada uns momentos tomando força para decidir-se a entrar enquanto contemplava a moto que se assemelhava em todos os pormenores com a que ela tinha montado e onde deixara a sua jaqueta.

            Dirigiu-se até a cancela após ter respirado para poder vencer a sua timidez e premeu a campainha.

            Silêncio.

            Passaram-se uns segundos e voltou a premer a campainha. A porta da casa abriu e saiu um homem de uns sessenta anos aproximadamente, com traças de não ser precisamente um camponês, mas um homem com uma presença cultivada. Achegou-se à cancela e abriu.

-         Boa tarde –respondeu com olhada de curiosidade-
-         Boa tarde –respondeu a Maria com amabilidade- Venho porque creio que alguém da casa tem uma jaquetinha da minha propriedade e venho por ela.
-         Uma jaqueta? Pois... não sei. Como é a jaqueta?
-         Pois, castanha, de ponto e com desenhos andinos.
-         Bom, vamos ver se sabe algo a minha senhora –concluiu o amável senhor-. Emília!!! –berrou chamando pela sua esposa- Emília!!!
Emília saiu pela porta com uma cafeteira nas mãos.
-         Que é o que se passou? –perguntou-
-         Esta rapariga diz que tens uma jaqueta dela –comentou o senhor enquanto a Emília punha expressão de estranheza no rosto-
-         Não, não é assim exatamente –interveio a Maria com um sorriso para descontrair a conversa- Não creio que a tenha a senhora. Para ser mais concreta creio que a deve ter o dono dessa moto que está cá arrumada. Esteve com ele há uns dias e quando nos despedimos deixei a jaqueta esquecida e ele foi quem a levou sem se dar conta.
Nesse momento tanto o amável senhor como a Emília puseram rosto de grande surpresa.
-         Como? –disse ele- Quem dizes?
-         Acho que se chama José e combinei com ele há uns dias. Levou-me à minha morada nessa mesma moto.

Os senhores da casa mudaram a sua expressão até a brancura extrema não podendo acreditar no que aquela rapariga estava a dizer.

-         Minha Nena, estás num erro grave, - respondeu o homem- o dono dessa moto era o nosso filho mas está morto desde há três anos.

O que estava a ouvir Maria deixou-a fria como o gelo. Era ela agora quem mudou a expressão do seu rosto. A surpresa, a incredulidade e o medo se mesclavam nela.

-         Bom, aqui deve haver alguma confusão – reafirmou -. Eu combinei com alguém que me levou nessa moto há uns dias. Disse que se chamava José, tinha o cabelo preto e com os olhos verdes, meia estatura... e estava vivo!!

Emília achegando-se até a cancela confirmou.

-         O nosso filho chamava-se José, tinha os olhos verdes, o cabelo preto era de meia estatura... e está morto.

O silêncio governou por um momento aquela tensa situação. Os três ficaram olhando os uns para os outros sem compreenderem absolutamente nada até que o senhor decidiu.

-         Quero que venhais comigo
-         Aonde? –perguntou a Maria-
-         Vem –cortou ele à vez que saía da cancela para afora e se punha a caminhar-

Maria confusa andou detrás dele sem fazer mais perguntas. Ele caminhava com decisão até que chegou à estrada geral onde estava a igreja de São Miguel do Campo. A Maria não queria imaginar o que queria o senhor e por respeito seguiu-o mas não porque lhe resultasse agradável. Entraram no cemitério e justo a uns passos da entrada a Maria parou, levou as mãos à boca, abriu os olhos e sentindo um frio arrepio pelo seu corpo só pude dizer...

-         Por favor senhor, não me conte mais...

O senhor olhou para onde ela dirigia a vista e viu acima de uma tumba uma jaqueta de ponto, de cor castanho e com desenhos andinos. Acima uma formosa rosa vermelha e na cabeça do túmulo, justo onde a cruz, uma foto a cor dum formoso rapaz de cabelos pretos, olhos verdes, sorriso agradável e um nome escrito: José Barreiros Failde.