segunda-feira, 27 de junho de 2011

O trompetista

Por Marcos Daseiras
A noite apanhou o músico no caminho da verbena. Era o tocador da trombeta e uma orquestra sem trombeta é que não pode tocar. Os dançarinos que ainda conservavam as ânsias apesar da chuva, perderam-nas de vez, por obriga, quando o director, cantante e condutor do camião anunciou a ausência do elemento mais importante do conjunto:
- E os senhores hão de compreender que, sem trombeta, não podemos oferecer o nosso repertório mais aguardado. É por isso que demando do distinguido público o perdão.
Apesar de não haver baile, ao outro dia, o vereador de cultura e membro da comissão de festas não deu falado com qualquer músico que fosse. O dinheiro que pagaram já não haviam de recuperá-lo, pensou, enquanto encaminhava os passos para a reunião extraordinária da assembleia municipal, onde o único ponto da ordem do dia era a trapalhada em que se convertera o último dia das festas do patrão. Para além da verbena falida, a chuva que caíra desluzira o espectáculo de fogos artificiais que, como todos os anos, estava prevista para encerrar as celebrações. De feito, devera cair toda pela noite, porque o dia estar, estava frio, ora, amanhecera sem uma só nuvem. Vinha a dar-lhe voltas na cabeça ao informe que teria de apresentar perante os nove companheiros e dez companheiras que foram elegidos após as últimas eleições autárquicas, parecia-lhe estar a ouvir os berros do chefe da oposição a pedir-lhe a demissão, não, a exigir-lhe a renúncia ao cargo e a devolução das receitas que cobrara desde que se aprovara a concessão da dedicação exclusiva, esquecendo o tal chefe da oposição que tal aprovação acontecera quando ainda era a mão direita do presidente da câmara.
Sem dar por isso, houve um momento em que o vereador ergueu a olhada do tramo de chão que lhe ficava mesmo diante dos pés e viu, a atravessar o campo da feira, um forasteiro que reconheceu. Sim, era ele. Não podia ser outro. Não havia dúvidas. As nuvens da sua mente começaram a despejar-se, deixando um céu ainda mais azul que o exterior. Nem os berros imaginários do chefe da oposição foram quem a cobrir a ideia que se lhe formara no cérebro, já logo sem saber como, mal vira o trompetista da orquestra. Tinha de o ser, não apenas porque era a única solução, se finalmente tudo corria bem, aos problemas financeiros que xurdiam à sua frente como ainda porque a tal hora as classes de trombeta que dava um músico da terra num local das traseiras da igreja estavam suspendidas à espera da confirmação da homologação dos títulos pelo tribunal supremo de Galiza, aonde chegara o recurso apresentado pela Associação Provincial de Trompetistas Profissionais da Crunha, da que o professor fora expulso por ter aceitado tocar no casamento duma velha amiga, que fora noiva, em tempos, da presidenta perpétua da associação. Todo o mundo sabia disso, mesmo os moradores das freguesias mais afastadas da vila, pese embora a concentração potencialmente tóxica das emissões da chaminé da central combinada de energia nuclear e tratamento de resíduos urbanos que uma empresa americana montara no vale após cobrar uma subvenção do concelho para projectos respeitosos com o meio ambiente. Não podia ser que um vizinho qualquer estivesse àquelas horas a atravessar o campo da feira com uma trombeta, desafinada pela chuva da noite, na mão.
O vereador tinha de agir depressa. Não sabia o que o músico viera fazer ali, e quanto tempo iriam demorar as gestões que devia realizar. Talvez andasse o homem perdido, desorientado, a procurar pelos outros componentes da orquestra, que onde ia que escaparam agachados no interior do camião. Apenas o director e chofer tivera de enfrentar a ira dos frustrados dançadores, que expressaram a sua opinião, contrária à decisão tomada pelos músicos, pegando nos croios do solo do campo da feira, restos das recentes obras de remodelação, provavelmente desnecessárias ainda que mais bonita ficou, e atirando-os contra os vidros da cabina do condutor. O director da orquestra e motorista foi atingido na testa, e começou a sangrar generosamente, mas nem por isso calcou no pedal do freio, calcou no de aceleração, levando por diante um grupo de manifestantes que tratava de impedir a fugida dos traidores. Isto provocou ainda mais as iras dos atacantes, que perseguiram a viatura até mais alô dos antigos lameiros agora ocupados pelo polígono industrial, entre as naves propriamente industriais, as silvas e tojos que voltavam a invadir as parcelas não edificadas e o lixo que deixaram atrás uns ciganos (é verdade que os ciganos, antes de marchar, deixaram tudo bem arrumadinho e disposto para ser retirado e depositado no local ajeitado, mas ninguém viera recolhê-lo e disto havia séculos).
Os intentos desesperados dos membros da comissão de festas para acalmar os ânimos foram inúteis. O argumento da provável denúncia por agressão que os agredidos iam interpor nos julgados não podiam convencer umas massas formadas, os mais deles, por lambões vindos de fora do concelho. Era para se ver o cortejo dos sobreviventes, ao regressarem à vila depois da batalha, derrotados, para pegarem nas suas viaturas e regressarem à cidade. Regos de suor misturados às pingas da chuva e à lama nos rostos de cansaço e desilusão, voltavam enchoupados, enzoufados, enfoulados não, porque a festa do pão fora o domingo. Arrastavam as pernas, que não se davam afeito à súbita mudança de objectivos e mais de carácter, de bailarem a perseguirem, de perseguirem a retirarem-se. Porque a regedora da polícia municipal não era amiga de bória, que, a sê-lo, dava mesmo vontade de mandar os quatro agentes da força prenderem imediatamente os que voltavam da infrutífera perseguição do camião, não pelo quebranto às normas de boa conduta e convivência cidadãs, antes pelo contrário, por não terem sido quem a impedir a fugida da orquestra. Sim, o camião liscara. O director da orquestra e camionista tivera, ainda por riba, um gesto para com os derrotados e mais para com os membros da comissão de festas antes de abandonar o território da freguesia e do concelho: um toque prolongado da buzina seguido dum outro mais curto, a fazer troça dos que ficavam para trás. Mais longe, na vila, o eco da buzina chegou aos ouvidos dos membros da comissão de festas, que interpretaram a mensagem da buzina no sentido de confirmar as suspeitas que criaram quando a  algazarra começara. O director da orquestra tinha mentes de iniciar um processo quer judicial quer cível contra eles. Tal lhes quadrou a ação despesperada promovida pelo presidente da comissão, que também era, já o sabemos, o vereador de cultura da câmara municipal.
Voltando ao presente da narração, eis vemos o tal vereador a aproximar-se do trompetista. Para causar mais efeito, fê-lo a modinho e pelas costas, como a subministrar um remédio qualquer contra o soluço. Ter, não sei se dantes soluço teria, mas no tempo que o trompetista passou ao serviço da câmara municipal, não cessou, nem em público nem em privado, de sofrer uma ou outra contracção involuntária do diafragma. Tal passou a fazer parte do espectáculo, e sem dúvida contribuiu para o seu imediato sucesso, que mudou num sentido inesperado os planos iniciais do presidente da comissão. O início da relação foi, pois, um leve empurrão, acompanhado dum berro seco, que o político incutiu ao músico. Ainda sem repor o ritmo cardíaco nos valores regulares prévios ao susto, o desorientado trompetista teve de ouvir como aquele desconhecido lhe propunha um acordo sem pés nem cabeça, ao passo que lhe pedia para o acompanhar à casa do concelho como convidado estrela.
Ainda que não a previra, a sua entrada em cena afigurou-se-lhe espectacular ao vereador de cultura. Nos seus ouvidos, ressoava a música de cem trombetas. Os companheiros adornavam o caminho entre a porta do salão e a sua cadeira arrojando-lhe aos pés flores de todas as classes e de todas as cores, entre ruidosas salvas de palmas sem fim. Porém, longe disso, a única trombeta que soava era a do músico, desafinada, que, timidamente, entrara no salão de plenos atrás do satisfeito regedor. As salvas de palmas eram os protestos irados dos outros concelheiros e mais do presidente da câmara, que pronunciavam berros interrompidos, nalguns casos, por contracções diafragmáticas semelhantes às do músico, só que as consequências foram as opostas. Os concelheiros que não puderam repor-se em tempo, foram afastados das listas para as seguintes eleições autárquicas. Quanto ao manto de flores, poderia ser identificado como formado pelas carteiras, estradas pelo chão como se fosse uma aula de exame, nas que o de cultura, que continuava nas berças, tropeçou, indo cair debruçado contra o rebordo da mesa. Não vos conto a dor com que o homem teve de apresentar o seu plano inicial.
A relativa recomposição do cenário demorou-se uns minutos. O chefe da oposição foi o último a calar, já havia de ter tempo mais para a frente, prometeu-lhe o presidente da câmara, a pedir demissões a eito. Por enquanto, as olhadas de todos concentraram-se nos recém chegados. O presidente da câmara deu-lhe a palavra ao presidente da comissão, que explicasse a razão da demora, duma entrada tão irregular e mais da presença dum forasteiro na sessão.
- Estimados compatrícios: - discursou o presidente da Comissão, como se fosse um general romano de regresso das suas campanhas de depredação das províncias- o motivo da presença de tão descabida personagem em tribuna tão ilustre é recuperar o honor das festas da freguesia. Este trompetista tão aparentemente pouca cousa é-vos o melhor músico de todos os tempos e tenho em mente organizar para a outra semana uma nova jornada de festa onde ele, o músico, actuará como uma orquestra, cobrando apenas como um cientista em práticas na universidade.
- Todos os instrumentos?, foram perguntado os vereadores, um a um ou por parelhas.
- Todos- respondeu o de cultura, sem olhar para o rosto de espanto do desorientado trompetista, que teimava em fazer soar levemente a sua ferramenta de trabalho. O sucesso da convocatória estava assegurado porque não iam cobrar nada pela assistência. Mas também havia que tirar proveito:
- Podíamos era procurar um título atraente e montar uns furanchos. Que vos parece: a Festa do Chocolate de Coiro?- propôs um membro anónimo da corporação municipal.
- Aprovado, aprovado- aprovaram, ao uníssono, os concelheiros de todas as cores, mesmo os independentes.
- Eu só queria acrescentar uma cousa- interveio o chefe da oposição-, que é para ela figurar no diário de sessões: exijo a demissão...
- Do vereador de cultura- completou o secretário, que também foi o que convidou- Imos tomar-lhe umas taças à de Interrogante para celebrarmos o acordo.
Havedes de vos perguntar a razão por que o trompetista aceitou o futuro que lhe tracejaram? Foi sobretudo por causa da desorientação que lhe causara o abandono a que o botara a sua orquestra. Se quadra, também ajudou a oferta dum dos pisos que o presidente da comissão recebera como parte do pago por umas leiras que vendera à empresa da central combinada.
O dia chegou e a I Festa do Chocolate de Coiro foi um sucesso. Mesmo apareceu por ali uma equipa da televisão galega, que fez uma reportagem sobre ela apenas porque precisava de encher uns minutos da grelha de programação que a suspensão dum partido de futebol deixara livres. Foi esta reportagem que provocou o lançamento a nível nacional do famoso e tradicional chocolate preparado à moda de Coiro (isto é, com um debuxo do Cruzeiro de Ferro no envoltório) e o descobrimento dum novo valor da música galega, o homem – orquestra, que actuou mais de cem vezes no Luar.
Mas não há mal que dure cem anos e um dia, pela manhã ou pela noite, tanto tem, sem saber como, Coiro começou a fartar-se do homem – orquestra. Dali a pouco um pleno municipal decidiu suspender o contrato que ligava o trompetista, o qual iniciou a sua carreira em solitário, sem grande sucesso financeiro, porque o coitado herdou, graças ao labor, bem recompensado com as requalificações duns terrenos próximos da central combinada, duma das melhores equipas de advogadas da Cabra de Baixo, a dívida que o concelho tinha com a sua antiga orquestra. A central combinada livrara até aí os vizinhos da freguesia da febre construtora, mas era visto que também não há bom que dure sempre:
- Nós também queremos cobrar, e os que não quiseram, foram expropriados.
Quanto ao trompetista, longe já a fama doutrora, casou-se com a filha do professor de trombeta, uma pianista clássica pouco reconhecida, mas de grande talento. Após a reforma do sogro e pai, a parelha fez-se cargo da escola de música, propriedade da mesma companhia que manejava a central combinada. 

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