segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sonata de um adeus


Por Azaharys

A minha harpa, a minha formosa e adorada harpa!... Ela, que soava alegre como um manancial de primavera, hoje só foi um adagio de tristeza que ressoou no meu interior e acabou por provocar as minhas tempestades. Tanta vontade tinha de senti-la próxima! Pensei que me confortaria com isso; mas nestes instante no que pôde escutar as suas envolventes notas escorregando pela regandija da porta no meu encerro , trazendo luz à minha obscuridão, só um desejo me atingiu inteiramente: Eu queria que me levasse com ela! Não me importei que não fosse uma intérprete experta nem que os sons que tirara de mim fossem queixumes pouco afinados. Se ela tivesse podido libertar-me deste estreito quarto fedorento!... Voltar a sentir as suas pernas apertadas ao meu corpo teria sido estar no céu, voltar sentir a sua mão frágil percorrendo o meu mastro, e a outra mexendo o arco de forma imprecisa para jogar com as minhas cordas, teria sido como morrer no mais excelso e puro dos prazeres, ainda que o mestre já não estivesse aqui para guiá-la, para lhe ensinar a forma correcta de fazê-lo.
—Onde está o André? —perguntou a minha harpa, e foi que me fez tremer ao ouvir o meu nome. Ela não me tinha esquecido. Depois de dous meses de morte do mestre, eu já tinha perdido a esperança de que viesse me procurar.
—Estás a te referires ao meu esposo?... De seguro está no inferno, compondo romanças para os demónios. O infame deixou-me arruinado! —respondeu a trombeta destemperada, essa mulher gritante e estridente; sempre tão aceda e tão ferinte.
—Sabes bem que me estou referir ao seu violoncelo. Deixou-mo ver no seu testamento. Venho a exigir que mo entregues —encarou-a a minha harpa, e a sua voz interpretou aquelas palavras com um mezzo-forte que me encantou.
Nesse momento a campainha da porta principal, no primeiro andar, tintinou.
—Nunca vou perceber a mania que o meu esposo tinha de lhe pôr nomes de pessoa aos instrumentos de ele possuía, especialmente ao violoncelo... Baptizá-lo com o seu próprio nome, há que ver que loucura...! —queixou-se a trombeta enquanto se punha de pé—. Desculpa, querida. Estava a aguardar alguém. Volto desseguida. —A sua voz pareceu mais comedida do que antes, mas seguramente que se tinha confrontado com a minha harpa com a sua postura de rainha, altaneira e digna, ainda que por dentro seguisse sendo a mesma prostituta trepadora e vulgar do bairro de do Vilar em Ourense.
Depois de que ela tivesse baixado pela escada, escutei à minha harpa a caminhar pela sala; quiçá se deteve para contemplar a pintura que Bazille fez para o mestre e para mim. Pôde sentir nesse momento a sua alma, pôde inclusivamente intuir os seus pensamentos: aquilo foi uma melancólica composição de recordações dolorosas, impregnadas do vazio que deixa o engano. O mestre e a minha harpa... Com que paixão e entrega se amaram! Foram tão felizes durante os anos que estiveram juntos, antes de que ele perdera o rumo, antes de que os sonhos que tinham atingido foram ultrajados pelo ego, pela necessidade da fama e o aplauso, pelas associações que ele estabeleceu com homens pudentes que alcançavam a conseguir apresentações nos lugares mais prestigiosos da Europa, relações de negócios que exigiam uma desvirtuada vida social, cheia de excessos . O mestre não era como eles! Eu sei-o, eu conheci-o, senti-o... ele me fez, fabricou-me, deu-me vida e também um nome; ele era um ser humano frágil demais, débil demais e influenciável...
Ainda lembro quando eu e o mestre tivemos conhecido a minha harpa no Auditório de Compostela; ele ainda era um homem pobre e falto de roce social, nem sequer tinha dinheiro suficiente para repassar o verniz com a frequência que eu requeria. Vínhamos de conseguir um lugar na filarmónica e, ao terminar a função, ela estava lá, detrás do cenário. A sua presença foi a mais formosa sinfonia que eu tivesse escutado em toda a minha vida: os olhos destilavam sons que pareciam coros de anjos, o seu riso fazia que ganhasse em formosura aos trinos mais perfeitos dum piano e  o seu cabelo estava a se mexer ao ritmo dos violinos que os seus modais e maneiras faziam soar na minha mente. No entanto, do seu interior surgia aquilo que se haveria de converter na minha inspiração para o resto da minha vida; eram notas que pareciam pingas de orvalho geradas num amanhecer de quimeras, como o som duma harpa que cantava as melodias mas lindas da existência. Demorei-me em sair do estupor inicial que a música da sua alma me produzia, mas desseguida senti o meu mestre turbado e contraído perante a sua juventude e beleza. No entanto, não só a formosura da minha harpa tinha diminuído a personalidade dele, mas também o obscuro som de um imponente contrabaixo , o pai dela, quem com descaro se atreveu a oferecer uma grande soma de dinheiro para fornecer secretamente o capricho da sua filha consentida, o de apreender a tocar o violoncelo; atividade que nem se pensava para uma dama. O meu mestre não pôde negar-se, ainda que eu sei que foi mais do que por medo a ele, por atração que sentiu por ela. Naquela altura, ele não teve o valor para tentar engatar com ela. Vá! Como é que se arrependeu aquele contrabaixo de tê-lo contratado, depois, quando a minha harpa fugiu com o mestre. Infelizmente nunca soube que a ideia tinha sido dela... Aaaah! Ocasionalmente era tão intempestiva, como uma melodia súbita que surge num arranjo musical e muda a obra na sua forma e essência. Foi tão fácil para ambos nos namorarmos dela!
Ao escutar a trombeta destemperada voltando à sala, as minhas recordações é que se derrubaram; e suponho que também o fizeram os da minha harpa.
—A minha visita vai aguardar até que acabe este assunto contigo —disse-lhe muito parcamente—. Tenho-te uma má notícia. O violoncelo não está.
—Como é que não está? —perguntou a minha harpa, incrédula.
—O mestre incinerou-o pouco antes de morrer.
—Não!, não pode ser! Ele jamais... jamais teria feito uma cousa semelhante!
—É pena, querida. As suas cinzas ainda estão no prédio. Não quis mandar que as limpassem, por se vinhas, para que visses por ti mesma a loucura na que ele caiu. Imagina! Queimar um instrumento que valia tanto dinheiro —disse-lhe, atuando a sus mentira com virtuosismo. Que malfadada!  Nesse momento percebi por que é que depois da morte do mestre mudou as cravelhas e as cordas: foi para enganar minha harpa.
—Não! Não pode ser, tenho que confirmar de que se trata de Ricardo —A angustia na voz da minha harpa fluiu num nervoso tremolo. Quase pôde ver como a candura e o brilho dos seus olhos zarcos ficavam desiludidos.
—Hei de ensinar-to. Segue-me —incidiu a trombeta com tom vitorioso.
As duas saíram da sala, e o silêncio trouxe-me o presságio de que seriam os últimos momentos perto dela. Foi ali quando a culpa me possuiu, criando uma desarmonia que me destemperou por inteiro. Três anos! Três anos desde que a minha harpa abandoou o meu mestre; se ela tivesse sabido nesse momento quanto ele a amava, o arrependido que ele estava, perdoá-lo-ia com os olhos fechados; teria ficado ali. Mas ele nunca pôde exprimir com palavras o que era, em verdade, importante; padeceu do mal de muito músicos, que acreditam que com as notas bem postas numa formosa melodia já o dizem tudo. Era tão pouco inclinado a falar do que havia no seu interior, e eu acreditava que ela, a pesar de compreender os sentimentos que ele punha em cada uma das suas obras, aquela vez, sim necessitava das palavras profundas e sentidas que nascem do coração.
Descobrir a infidelidade do mestre foi para a minha harpa a ruptura das suas mais belas melodias, e eu... eu estava zangado com ele, também. Como era possível que tivesse traído a minha harpa com essa vulgar trombeta destemperada, harpia manipuladora com a que depois terminou casando! Enojei-me tanto que quebrei a simbiose com ele e ali esteve o meu mais grande erro. Ele acreditou ter perdido a sua inspiração quando a minha harpa se foi; pois sabia que ela o perceberia se lho exprimia  por meio da música; mas essa vez é que eu me neguei a cooperar: de mim, só conseguiu sons rudes e dissonantes modelados pela minha raiva. Agora é que me arrependo; Quanto me tenho arrependido de tê-lo deixado só! Refuguei para ser o seu canal, a sua ponte... É que eu queria que ele falasse! Que deixasse de se refugiar em mim e que fluísse nas suas palavras como um rio, como a música que deixa sair tantos sentimentos sem contenção, numa harmonia vibrante e sincera; ela o merecia.
O meu mestre! Ai, o meu pobre mestre!... tão sensível, tão formoso de alma, mas tão débil perante o mundo. Perdeu a minha harpa, a nossa harpa, e o seu mundo interior azedou-se até que o seu corpo adoeceu de leucemia. Eu escutei como nota a nota a dor foi consumindo-o; foi-se extinguindo. Foi um morendo triste e lento.
Depois destas lamentações, na negrura do meu encerro, escutei novamente passos pela escada. A trombeta destemperada entrou primeiro. Pôde imaginar o sorriso de triunfo no seu rosto; e, por trás, vinha a minha harpa, tentando reprimir um pranto explosivo.
    Toma, presenteio-te a pintura que o Bazille fez do meu esposo e o seu violoncelo, assim não te vais com as mão vazias e poderás lembrá-los aos dous —disse-lhe a trombeta, fingindo conexão de cara a ela enquanto despendurava a pintura da parede.
O pranto da minha harpa estalou finalmente num fortissimo agitatto, como uma trovoada que se descose com amargura incontornável; ali percebi que, a pesar de todo, incluso depois da sua morte, ela continuava a amá-lo; e eu, eu que era quase um pedaço dele, o único que queria era permanecer ao seu lado para enchê-la de melodias que aplacassem a sua dor.
A minha harpa e eu fomos os únicos que realmente o conhecemos, o compreendemos ... e por obra de uma vulgar trombeta barata, o consolo de permanecer ela comigo e eu com ela, é que nos foi negado. Pus-me a chorar também, ainda que que não havia qualquer mão que tirasse as tristes melodias que nesse momento me assolagavam.

Não houve mais sons do que os dos seus passos baixando a escada; e eu fiquei sumido no mais frio e amargo silêncio. Nunca gostei do silêncio, excepto o que vai da mão dum adeus obrigado.
Não me dei conta em que instante a trombeta destemperada voltou à sala, junto à visita que tinha ficado aguardando na entrada: um trombone de rejo metal. Sumida na minha pena, também não tomei atenção à longa conversa que sustiveram; nem me inteirei do acordo económico ao qual chegaram, até que escutei dizer:
—É um instrumento único, hás de vê-lo. O seu cliente japonês estará comprazido. Se me ajudar a mexer a biblioteca hei de lho agradecer. Detrás dela está a pequena adega onde o guardo. Vc. Sabe que um tesouro assim é que convém tê-lo longe das olhadas ambiciosas.
Agora é que o percebo: “longe”... assim que longe da minha adorada harpa é que me vou, para me espargir em espaços desconhecidos as sentidas notas que na minha madeira hoje se gravaram e, com certeza, mudaram para sempre o som da minha voz.



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