sábado, 26 de novembro de 2011

A derradeira leia


Por Mabel Pérez Rivas.
25 de Novembro: Dia Internacional Contra a Violência de Gênero.

Acabou-se. Ja não se ouve nada. Remitiu o barulho. O cão ja não ladra. Ouveia, e o cativo chora. Agora só um murmúrio afastado de vozes e bágoas surdas. Sinto escorregar algo quente pela gorja, mas estou em paz. Tranquila.
Qué estranho! A minha mãe chora silenciosamente e eu olho para ela. O meu pai turra dela.
Sinto frio. Invade-me o frio. E as palavras resoam:
- Puta! Zorra!”- e agora vem: -Desculpa. Sinto muito. Quero-te tanto! Amo-te!. É que tiras o pior de mim... Amo-te! Não posso viver sem ti, nena! “
E é certo. Tiro o pior dele. Não che sou boa!. Se estivesse calada.... Porque tenho que incomodá-lo? Ja sei como é. Estou melhor calada, olhando de cara a outro lado. A mim que é o que me importa o que faça, nem a hora à que chegue?! Mantém-me, ainda que eu também trabalho e tenta fazer-me feliz, que mais quero?! Quere-me e pede-me desculpas a sério, chorando, ainda que às vezes não parece, mas, claro, tiro o pior dele. Fica irritado pela minha boca. Quando eu era cativa a minha tía-avó ja mo dizia:
-Com o carácter que tens o homem que te leve vai-te malhar a pancadas-.
Que razão tinha!. Se calhar sou-che eu que não sou boa. Que o mereço. Que não estou atenta. Porque faço uma comida com pouco sal se sei que ele não gosta? E as lulas estavam  frias, claro. Por que não as teria quentado no forno de microondas?!. Vem canso de trabalhar para mim e o cativo... Devo aguardar a que chegue, a qualquer hora e ter-lhe a comida quente e atendê-lo como Deus manda!. Ja mo diz a minha mãe: 
- Os homens há que atendê-los. Tens que ser uma mulher da tua casa e ter-lhe tudo arranjado, a roupa repassada, passar o ferro, a comida na mesa, um sorriso no rosto e sempre disposta, porque é o teu homem-

Hoje eu não sorri. Porque estou farta!  
Ja não sinto o seu alento quente, sujo, bêbado e intransigente. Ja não o aturo!
Ja não o ouço.
Ja não sinto essas mãos noxentas acarinhando o meu corpo quando ele quer, como ele quer, onde ele quer. Essas mãos que tanto te acarinham quanto te golpeiam e te malham, e te beijam, alouminhando o teu desejo apagado, perdido, aos poucos anos de tê-lo conhecido.
Faço-me a dormida mas ele faz-me acordar. Hoje há leia! Ja o ouço farfulhando em voz alta na cozinha. Despertou o neno. Temos “festa”. Tremo. E depois, o sexo, o nojento sexo. Hei de fingir mais uma vez e há de parecer que gosto dele, que o desejo, enquanto penso no tempo que vai durar tudo. E não se há de dar de conta?. Isso apreendi a fazê-lo com certeza.
Mas não. Hoje não. Hoje digo-lho. Não quero! Não te quero! Não te soporto! Vai-te!
Alguém me toca. Estou estranha! Aglutinam-se-me os pensamentos na cabeça. Não vejo. Estou às apalpadelas mergulhada nos meus pensamentos. Não sei se foi, se é, se o disse. Sinto-me estranha. Estarei a dormir?. Mais ouço o neno que chora e ao cão que ouveia. Quero erguer-me.
Onde estou? Eu não o ouço, não ouço os seus berridos. Eu estou vencida pela calor... e de repente, o frio. Um frio infernal, escondido, calmo e duro.
-         Déixo-te
-         A mim não me deixa nenhuma puta. Zorra! Filha de.... Tiro-che o neno!
-         Não posso mais, a ver se é que o percebes. Quero viver!
-         Nada te chega, zorrão! Que mais é que queres de mim? Putão! Vivo para ti e tu não fazes nada. És uma merda! Não és nada! Aonde vas ir tu, saca de merda? Viver? Viver de que? Se não serves para nada.Quem te está influenciando? As tuas amiguinhas, não é? Aguarda a que eu as apanhe... Ou é que tens outro?. Tens outro, não é? É isso, com quem te estás a deitar? Zorrão! Mato-vos aos dous!!!!!
E as labaçadas caem, como a chuva no inverno, abruptas, duras, incessantes...
Mas ja não o ouço, tudo está em silêncio, ja não choro, ja não grita. Um frio de aço penetra no meu corpo...
De longe, alguém tem ligada a televisão. Estão com o telejornal e escuto:
- Gisela Neira, vítima 501 da violência de género, a violência machista quebrou hoje a paz (...), o mal do novo milénio...
Mas essa não sou eu. Sei-que não, porque hoje tomei uma decissão. Ser livre. Deixá-lo. Viver...  
Vejo uma luz. Estou acordando. Sinto dor. Ja não escorrega a agua quente pelo meu corpo. Ja não tenho frio. Sinto-me estranha, escuto atentamente, os meus sentidos estão vigiantes, o cativo ja não chora, e penso, logo...
Hoje tomei uma decissão, sabia, a decissão de que hoje sera o primeiro dia da minha vida, e,  por fim, hoje,  sou livre!


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