Por Búbalon
Quando o Marcial teve notícia de que tinha de ir à guerra pensou que ia morrer irremediavelmente, pelo que pensou em deixar um bom recordo em Passarim para que todo o mundo soubesse quem era ele muitos anos mais tarde. Não se lhe ocorreu outra cousa mais do que deixar sem teitos todas as casas da aldeia. Telhados de colmo ou de telha, tanto fazia, nem um ficou são.
Elvira, a sua mulher, quando se inteirou de que o seu homem ia ir à guerra, disse: “Que é a guerra?”. O seu pai, o papai Camilo, respondeu que era uma peleja a tiros na que morrem muitos homens, como foi a de Cuba. Elvira, grávida de um mês sentiu-se desfalecer quando soube que não ia ver mais ao seu homem, e que iria ficar sem o seu apoio durante a gestação. Tentou convencer ao seu Marcial para que não fosse a semelhante lugar. A quem se lhe ocorre ir buscar o mal pela mão?. Mas quando soube que se não ia por própria vontade, a própria Guarda-Civil, que teoricamente é quem nos protege dos malvados, matá-lo-iam por não querer ir. Quase toleia. “Mas não estão para nos ajudarem”? comentou sem acabar de perceber bem o assunto.
Aquela noite houve que agarrá-la para evitar que impedisse a marcha do Marcial. Ele tinha que estar às seis de manhã em Chantada, se não, viria a Guarda-Civil buscá-lo. Mas pouco antes dispus-se para deixar os teitos nús.
Assim foi. Comeu e bebeu até a total fartura. Depois, oculto nas sombras da noite botou um par de horas a andar pelos telhados a quebrar o colmo das palhaças de Passarim e deitar as telhas das casas. “Hei de morrer, -disse- mas vão lembrar sempre o Marcial”.
Depois da falcatruada foi para a casa onde estava a Elvira chorando e berrando para convencê-lo de que não fosse, de que melhor poderia ser fugir ao monte. O Marcial não queria ser um perseguido e colheu o necessário para viajar a pé uns quantos quilómetros até a Comandância da Guarda-Civil de Chantada onde chegou sem dormir por volta das 6:00 da manhã.
Em Chantada, Marcial foi recrutado e mandado para Marrocos onde esteve uns dias antes de voltar para a península onde também percorreu muitos lugares que não pensara nunca que existiam. Não percebia como podia haver gente em lugares sem árvores, chairos, onde a terra não dava nada em absoluto, onde o calor dava sede e não havia uma miserável fonte onde poder molhar os lábios. Sei-que lhe chamavam Castela, àquilo. Lembrava aquele nome porque gente da sua família tinha ido à sega àquele lugar tão desagradável.
Pela sua experiência com os animais, puseram-no com um cavalo para repartir a comida entre os soldados da força de choque que eram os que melhor podiam matar vermelhos, cousa que também ele devia fazer. “Matar Vermelhos!?. Como vou matar vermelhos se eu nunca vi ninguém vermelho!. E como vou fazer isso se a mim nunca me fizeram mal!?” - Pensava Marcial - “Eu sei que existem os pretos ... em Cuba, e os mouros em África, que também são um bocado pretos... mas, Vermelhos?”. Era o pensamento que viajava pela sua cabeça embora não se atrevesse a perguntar porque aqueles militares que governavam a sua vida, bêbados, violentos, malfalados, putanheiros e que falavam espanhol, podiam dispor da sua vida e matá-lo como se fosse um animal da corte. Tinha muito claro que enquanto ele pudesse demorar o momento de topar-se com uma bala de caminho, melhor.
Levaram-no de cá para lá, viajando as vezes no carro do exercito, outras vezes a pé. Passou muitas batalhas e safou como pôde em cada uma delas. Todos os dias os seus mandos falavam dos vermelhos e diz-que deviam ser muito ruins porque roubavam o ouro de Espanha, matavam os curas, eram ateus e queriam quebrar a unidade da pátria.
Tal como o diziam, semelhava que todo aquilo devia ser grave. Roubar o ouro de Espanha!?. Isso não o ia consentir. Ele próprio tinha uma mó de ouro que lhe custou muito cara. Não ia consentir que nenhum vermelho lha roubasse... Matar aos curas!? Pobre Padre Felisindo, o cura de Temes, que foi o que o ensinou a falar um pouco em espanhol e lhe dava figos quando era pequeno. E isso da unidade de pátria que é onde vives, onde trabalhas, onde tens a família??... como ia consentir ter que passar uma fronteira entre Passarim e Ourense!. Depois dir-se-ia que ele era estrangeiro em Ourense!!!... E o de ateus?. Deus me livre!. Por todo isso os vermelhos não deviam ser muito bons. Seriam vermelhos porque o diabo também é vermelho e quiçá ... estejam emparentados.
Marcial seguia viajando. Conheceu lugares e batalhas como Brunete, o Ebro, etc, e conseguiu não fazer um só tiro contra ninguém. Nem contra os vermelhos, pois o Padre Felisindo sempre lhe tinha dito aquilo do “Não matarás” que era lei. Por certo! porquê matavam os seus mandos se eles eram os que diziam defender a religião?
Isso foi um grande mistério que nunca chegou a compreender. Havia algo errado em tudo isto.
Um dia de neve teve a obriga de levar comida entre os soldados da trincheira, que depois de horas e horas metidos ali necessitavam repor energias para poderem com os vermelhos que estavam a poucos metros deles acejando e aguardando o momento para tirarem-lhe o ouro das mós ou pôr uma fronteira em qualquer lugar...Ainda que aquilo não lhe semelhava muito a “Espanha”. Diz-que lhe chamavam Teruel e como o Padre Felisindo dizia que a pátria é o lugar onde vives, onde trabalhas...Aquilo não devia ser Espanha porque era muito diferente a Passarim. Para Marcial a Espanha era verde, com muita água nos regos, leiras pinas cultivadas e tojos, carvalheiras, casas de pedra, rios e muito monte onde moravam os lobos e os javalis.
Marcial viu que lhe caia a noite acima e tentou procurar um lugar acolhido onde poder passar a noite. Depois de percorrer o monte topou-se com uma cova à que se achegou. Parecia que havia alguém dentro pois uma cativa luminescência de fogo ardendo fez-lhe crer que haveria ali um pequeno grupo de companheiros também perdidos que se acolheriam naquela espelunca á espera da luz do dia. Marcial seguiu-se achegando, e quando estava a poucos metros, alguém saiu da cova com uma arma na mão. Marcial pensou. E se era um vermelho?.
- Alto aí - disse o homem - Achega-te com as mãos na cabeça e vai devagar - terminou em perfeito espanhol-
Marcial cheio de medo avançou, mas o homem não parecia um vermelho... um bocado louro sim, mas o que se diz vermelho, vermelho... não era. Mais do que vermelho...roxo. Sim, roxo, como era o próprio Marcial.
- Passa dentro da cova.- ordenou -.
Marcial obedeceu e viu dentro da cova mais dous homens.
- Como te chamas? - disse um deles lançando um cigarro longe com um hábil jogo de dedos -.
- Marcial, Marcial de Passarim - contestou com medo-.
- Que te leva por estes lugares? - perguntou outro -.
- Pois, procurava um lugar onde dormir. Vinha a noite e os meus estavam longe...- contestava enquanto o que o recebeu revistava as suas roupas vendo que estava desarmado -.
- És galego, eh ? - respondeu o terceiro de forma afetuosa -.
- Pois sim - contestou Marcial querendo responder afetuosamente também -.
- Pois nos somos asturianos, e como podes ver somos o que vos chamades “vermelhos”.
Esta conclusão fez com que os três botassem a rir de primeiras, mas uma vez o Marcial se deu conta de que estava entre “inimigos” ficou frio, começou a suar e a lhe tremerem as pernas. Ainda assim reparou neles e comentou:
- Mas, se vos sodes brancos como eu! - os republicanos asturianos botaram-se a rir compreensivos-.
- Senta connosco - disse o do recebimento colhendo-o pelo ombro com afeto
- Comiche algo? - continuou à vez que lhe passava uma tarteira com comida -.
Marcial comeu e falou com aqueles “vermelhos” tão amáveis, perdendo o medo pouco a pouco, passando o tempo rindo e contando-se as suas vidas. Chamavam-se Xuacu, Lluisin e Valente. Sabia-o porque lho disseram no meio da conversa e eles mesmos lhe ensinaram que os seus nomes estavam escritos no peito das suas camisas bordados pelas suas namoradas, como mais tarde comentaram. Marcial não sabia ler, mas observou as letras do cosido da camisa com interesse.
Ele não sabia que os vermelhos eram pessoas com famílias, com esperança, humanos, como ele. Com eles descobriu que quem começara aquela absurda guerra não foram os que se creia, que tinha sido cousa da política. Isso veio confirmar-lhe a ideia de que o alcaide de Carvalhedo, ao qual pertence Passarim, nunca lhe parecera boa pessoa. Sempre detrás da gentinha para que o votassem. Para que pudesse continuar mandando neles e para se fazer rico enquanto em Passarim todo o mundo tinha de trabalhar as leiras para comer.
Marcial acreditou naqueles “vermelhos” e realmente não pensava que alguém que fosse o seu inimigo pudesse compartilhar com ele umas lentilhas, chouriço e vinho. Alguém tinha que ter-lhe mentido sobre muitas cousas. Aqueles asturianos republicanos não podiam ser maus, pensou, à vez que já cansados de falar e rir acabaram dormindo todos ao calor daquela fogueira acolhedora que os livrava do frio extremo do exterior.
De manhã, Marcial despediu-se dos seus amigos e marchou rumo do lugar onde ficaram os seus companheiros. Caminhou bastante tempo. Como umas duas horas até que por fim deu com eles. Parecia que ninguém achara em falta Marcial. Algum, mesmo, lhe comentou com total indiferença que pensara que tinha morto às mãos dalguma patrulha republicana. Todos viam todo do mais normal e Marcial não tinha pensado soltar nem um chio para não descobrir os seus amigos asturianos. Todo voltou à normalidade.
Poucos dias depois, Marcial teve a ordem de repartir alimentos na frente onde aqueles dias se estava a levar a cabo uma forte ofensiva contra as posições inimigas. Os tiros eram contínuos, as bombas estouravam continuamente e às vezes perto donde ele estava. Os mortos e os feridos cresciam de vez em vez e a cruz vermelha tinha trabalho extra. Por duas vezes dous estoupidos caíram a poucos metros do Marcial ferindo a gente conhecida dele. Um, após o impato, berrava sem uma perna, cheio de sangue escorregando pelo rosto, a roupa e as mãos; outro morto com gesto de medo e dor, e outro caíra após receber um troço de metralha no corpo para morrer, sem fala, dali a uns segundos alçando os braços para que o ajudassem.
Marcial aquele dia ficou terrivelmente fundido, deprimido e canso. Quando acabaram os combates e já pela noite, quando os seus companheiros riam, bebiam e cantavam ao redor do lume celebrando a “vitoria” contra as tropas republicanas que defenderam aquele lugar viu algo que o deixou frio e mudo. Ele não queria saber nada de divertimentos com os companheiros até que tomando um pouco de café num lugar afastado do ruído que faziam os soldados, viu como vários falangistas traziam três corpos atados de pés e mãos a um pau como javalis ou veados vindos de caçar. Marcial alertado pensou que reconhecia aqueles corpos e botou a correr cara a eles. Os camisas azuis riam e juravam contra aqueles mortos e Marcial a poucos metros deles ficou sem respiração. Nas suas camisas apareciam bordadas aquelas letras que ele não sabia ler, mas pôde reconhecer sem qualquer dúvida os bordados nas namoradas do Xuacu, do Lluisin e do Valente. Não se podiam reconhecer pelo rosto desfigurado pelas feridas, a deformação e o sangue. Aqueles eram os “vermelhos” tão amáveis que o ajudaram quando estava perdido. Eram os seus amigos. Marcial jurou para si próprio que ainda que o obrigassem não ia matar nunca ninguém por muito republicanos e vermelhos que fossem. Marcial botou muitos dias a chorar, mas também, felizmente, nunca ninguém aqueles dias lhe ia perguntar porque chorava. Todo era dor ao redor, para todos. Havia razões para não estarem felizes, mas ele também não ia responder com veracidade.